O
Arrependido
Quinta-feira, 27 de Janeiro de 2005
Por:Rui Pedro Vieira
Nas
mãos ásperas do destino
Um
herói e desencantado deixa-se enredar nos jogos de sedução de
uma mulher tão bela quanto manipuladora. Em " O Arrependido",
Jacques Tourneur dirige Robert Mitchum e Jane Greer, duas estrelas
à deriva no mais perfeito "film noir".
É
uma das mais originais e poderosas tendências artísticas da cinematografia
norte-americana, influenciada pelo rasto de pessimismo e melancolia
que a Segunda Guerra Mundial deixou na mente dos espectadores
de todo o mundo. Mais do que um género ficcional, o aclamado "film
noir" foi um termo introduzido pelo crítico de cinema francês
Frank Nino, em 1946, para ilustrar o aspecto turvo e sombrio das
imagens e das histórias de alguns "thrillers" que Hollywood começou
a produzir regularmente, a partir do início da década de 40.
"O Arrependido/Out of the Past" (1947), de Jacques Tourneur, é
um exemplar perfeito do "cinema negro" por apresentar um herói
corrupto e desencantado, que perde o rumo e se deixa sucumbir
pelo charme de uma "femme fatale" e pelos negócios obscuros com
um "gangster" que o quer atraiçoar. A ambiguidade da acção, que
supera os chavões das intrigas policiais, é complementada com
uma técnica visual expressionista, em que uma única fonte de iluminação
condiciona o olhar do espectador para as silhuetas dos protagonistas
e, simultaneamente, consegue ocultar as possíveis imperfeições
de alguns cenários de baixo orçamento.
Jacques
Tourneur, um realizador francês que foi para Hollywood para trabalhar
como assistente de guionismo e de montagem nos filmes dirigidos
pelo pai, Maurice, expôs nos seus primeiros trabalhos uma atmosfera
pouco habitual no cinema norte-americano por apostar no terror
subtil e nos já referidos esquemas visuais manipuladores.
A emergência do "film noir" está associada, precisamente,
à emigração de alguns realizadores europeus para os Estados
Unidos - país que se apresentava menos dilacerado pela guerra
e com uma indústria cinematográfica promissora. Além de Tourneur,
outros nomes sonantes como os de Otto Preminger, Fritz Lang, Billy
Wilder ou Alfred Hitchcock revelaram modelos narrativos mais intimistas,
impregnados de uma subversão moral e contrastantes com os musicais
exuberantes, os "westerns" e as comédias românticas ligeiras que
abundavam nas salas de cinema de todo o mundo.
O rasto das recordações
Depois de entusiasmar o público e a crítica com a história de
uma mulher que se transformava num perigoso felino quando se sentia
ameaçada, em "A Pantera/Cat People" (1942), Tourneur prosseguiu
a sua parceria com o estúdio RKO Pictures com "I Walked With a
Zombie" (1943) e "The Leopard Man" (1943), experiências de terror
dissimulado que lhe granjearam o cunho de "cineasta das sombras".
A sua obra mais profunda, "O Arrependido", esquece a componente
sobrenatural e o misticismo, preferindo envolver-se nas memórias
de um homem aparentemente pacífico, que esbraceja contra um futuro
pouco auspicioso. Na verdade, tudo parece conduzir Jeff Bailey
(numa soberba composição do eterno "durão" Robert Mitchum) para
um destino implacável e só lhe resta o conforto de não se deixar
consumir facilmente por uma intriga que se adensa como uma bola
de neve.
"Talvez
o amor seja como a sorte - é preciso ir até ao fim para descobri-lo."
A frase é de Jeff Bailey e é proferida em jeito de desabafo, ajudando
a deslindar a atmosfera misteriosa e romântica que é apresentada
num longo "flashback". Bailey vive em Bridgeport, uma pequena
cidade da Carolina do Norte, e ganha a vida a trabalhar no posto
de abastecimento de combustível local. Numa tarde, um homem de
capa preta vem à sua procura e força o protagonista a reviver
uma paixão antiga que terminou abruptamente. Bailey afinal chama-se
Markham e, antes de se mudar para Bridgeport, trabalhou para o
criminoso Whit Sterling (Kirk Douglas) que o mandou perseguir
o rasto de uma misteriosa mulher, acusada de uma tentativa de
assassinato e de um roubo de 40 mil dólares.
Para
cumprir esse serviço, Jeff teve de se deslocar até Acapulco, onde,
nas noites quentes passadas num bar, encontrou Kathie Moffat (Jane
Greer), a "femme fatale" que o deslumbrou e o convenceu de que
as acusações de Sterling eram falsas. Durante semanas, Jeff e
Kathie viveram uma paixão intensa mas descomprometida, encontrando-se
às escondidas com medo de que Sterling os descobrisse.
O amor culmina num crime e o protagonista sabe que a chegada do
homem de capa preta à cidade onde tentou refazer a vida
- estando noivo de Ann (Virginia Huston), a única que fica a saber
da sua verdadeira história - o vai forçar a entrar, novamente,
numa espiral de perseguições e mentiras.
Triângulo
amoroso em colapso
Se,
em "O Arrependido", Robert Mitchum revela as imperfeições e o
desencantamento de um anti-herói de ar soturno e pessimista, a
mais camaleónica das interpretações cabe a Jane Greer, a beleza
penetrante que condensa o olhar gélido com a voz afável. Greer
representa o elo entre Jeff e o mundo do crime e é também o mais
perturbante elemento do seu passado, com um estranho dom para
usar a manipulação afectiva como argumento.
Para
completar um triângulo amoroso prestes a desmoronar-se, Kirk Douglas
assume-se como um "gangster" impulsivo e que, de algum modo, partilha
com o rival o fascínio por uma mulher controladora e a incapacidade
para lidar com as emoções. A sua personagem, a segunda da sua
extensa carreira, chega mesmo a reconhecer que os sentimentos
ficaram "escondidos em algum sítio, há dez anos atrás, onde ainda
não os consegui encontrar".
Em "O Arrependido", baseado no romance "Build My Gallows Eye"
de Daniel Mainwaring, não existem inocentes. Por entre a fotografia
sombria, os diálogos vagos e os sentimentos de culpa, aquilo que
sobressai desta obra-prima de Jacques Tourneur é o desejo de "escurecer"
o cinema até ao limite, seja nas suas imagens a preto e branco,
seja nas motivações do protagonista, imperfeito como o mais comum
dos homens.