"Um
romance como nos filmes"
Por RUI PEDRO
VIEIRA
Quinta-feira, 20 de Janeiro de 2005
Gene Kelly e Debbie
Reynolds descobrem o amor por entre coreografias exuberantes e
uma sátira às transformações técnicas e artísticas da sétima
arte. "Serenata à Chuva" é considerado um dos
mais belos musicais de todos os tempos. Por Rui Pedro Vieira
O ROMANCE
A evolução do cinema vista
pelo próprio cinema. O filme "Serenata à Chuva/Singin'
in the Rain" (1952) não é só um dos musicais mais adorados de
todos os tempos, como também procura satirizar as potencialidades
da sétima arte enquanto território exemplar de entretenimento.
Gene Kelly é o bailarino de serviço e o protagonista da célebre
sequência romântica, passada numa noite chuvosa, em que a sua
personagem, o actor Don Lockwood, esquece o guarda-chuva e pisa
as poças de água propositadamente, enquanto canta o refrão da
música que dá título ao filme. O segredo do sucesso de "Serenata
à Chuva" - que foi ignorado pela crítica da sua época - está ligado
à magia e ao espectáculo harmonioso dos números musicais
que Hollywood aceitou produzir no início dos anos 50. A opção
dispendiosa, que exigia um vasto grupo de bailarinos, guarda-roupa
colorido e cenários exuberantes, era uma resposta à invenção
e consequente popularidade da televisão. O protagonista Gene Kelly
e o realizador Stanley Donen partilharam a direcção de um projecto
que pretendia combinar a história de amor tradicional com uma
reflexão sobre "o admirável mundo novo" dos filmes sonoros e o
lado sufocante da fama. Quando os argumentistas Betty Comden e
Adolph Green começaram a delinear a história, tinham como ponto
de partida algumas canções de musicais antigos do estúdio Metro-Goldwyn-Mayer
(MGM) e uma paixão comum pelo cinema clássico e por alguns espectáculos
da Broadway. A solução foi criar um filme que falasse de outros
filmes e um musical que falasse de música. Mais do que obra pedagógica,
"Serenata à Chuva" é uma diversão irrepreensível que condensa,
em pouco mais de hora e meia, tudo o que de melhor as primeiras
décadas do cinema conseguiram oferecer.
Ganhar
voz no cinema"
A história começa com uma
cerimónia de apresentação do novo filme protagonizado por Don
Lockwood (Gene Kelly) e Lina Lamont (Jean Hagen), o casal mais
famoso do cinema mudo. À entrada do Grauman's Chinese Theater,
a passadeira vermelha estende-se para as vedetas que passam com
ar altivo e insistem em acenar para uma audiência eufórica. Como
numa qualquer entrega dos Óscares, a anfitriã do evento decide
interpelar Lockwood sobre o início da sua brilhante carreira.
Depois de explicar o segredo do sucesso -- "Dignidade... sempre
dignidade" -, a vedeta resume de forma atabalhoada o seu passado
como duplo em filmes de acção e como bailarino em espectáculos
amadores, sempre ao lado do amigo inseparável, Cosmo Brown (Daniel
O'Connor). Nessa noite, o filme "The Royal Rascal" é exibido com
sucesso, embora a posterior descoberta da sincronização do som
com a imagem venha alterar o rumo da história do cinema e ameaçar
o estatuto intocável do par romântico que faz sucesso sem abrir
a boca. O projecto que estava em preparação, "The Duelling Cavallier"
tem de se transformar num musical e é assim que nasce "The Dancing
Cavallier", obra onde Lockwood e Lamont têm de revelar um grande
talento vocal. Antes disso, numa noite, ao fugir das fãs, Don
cai literalmente no carro de Kathy Selden (Debbie Reynolds), uma
jovem actriz que diz desdenhar os filmes mudos nos quais o actor
participa. O seu preconceito é justificado pelo facto de, nos
seus trabalhos, o actor não falar, só fazer caretas e comportar-se
"como uma sombra". Lockwood apaixona-se de imediato por Kathy
e descobre que a mulher que insiste em contrariá-lo é uma corista
com excelentes dotes vocais. Quando começa a rodagem de "The Dancing
Cavallier", o realizador é obrigado a tomar uma atitude drástica,
porque a musa platinada Lina Lamont não consegue disfarçar o seu
timbre demasiado agudo e desafinado. É então que volta a entrar
em cena Kathy Selden para dobrar a voz da actriz pedante e de
fraca inteligência. Ao longo de todo este processo, Lockwood vai-se
afastando cada vez mais de Lina e só quer estar ao pé de Kathy.
O filme acaba por ser um sucesso, mas deixa no ar a ideia de que
o cinema pode ser também a arte da manipulação. Nada que um final
feliz não consiga resolver: graças a um esquema delineado por
Lockwood e Cosmo, o público descobre finalmente que a verdadeira
estrela é Kathy Selden.
Kelly
"versus" Astaire
Em "Serenata à Chuva",
cada mudança narrativa é quase sempre ilustrada por um número
musical persuasivo. Entre as melhores coreografias, contam-se
a do já referido número de Gene Kelly ao som de "Singin' in the
Rain" (tema usado pela primeira vez numa retrospectiva de musicais,
em 1929) e "Make'em Laugh", a dança quase circense de Cosmo para
explicar ao amigo que, no cinema, o que importa é a boa disposição.
Dos outros temas mais célebres, destaque ainda para "Moses Supposes"
(uma das poucas canções originais do filme), "Would You?" e "You
Are My Lucky Star". Nomeado apenas para os Óscares de melhor actriz
secundária (Jean Hagen) e melhor banda sonora, "Serenata à
Chuva" tem, ao longo dos anos, reconquistado o seu valor artístico
enquanto metáfora da "máquina dos sonhos" que o cinema também
deve ser. Na sua lista dos melhores filmes americanos de sempre,
o American Film Institute colocou esta obra feita à à medida
de Gene Kelly no décimo lugar. O actor principal de "Serenata
à Chuva" não foi, contudo, a primeira escolha dos produtores
deste musical, que preferiam Howard Keel para dar vida à
estrela Don Lockwood. Mesmo assim, Gene Kelly viria a tornar-se
num bailarino e "entertainer" quase tão célebre quanto Fred Astaire.
Quando o comparavam ao par de Ginger Rogers, Kelly dizia existirem
algumas diferenças nos dois estilos, chegando mesmo a reconhecer
que "Astaire representa a aristocracia e eu represento o proletariado".
Factos
e Lendas
Uma
chuva que não é real
Na gravação da sequência em
que Gene Kelly canta "Singin?in the Rain", a equipa técnica usou
uma mistura de água com leite para criar um efeito verosímil de
chuva. Consta que o actor teve de mudar várias vezes de guarda-roupa
e ficou constipado ao repetir a rodagem daquele que é um dos momentos
mais carismáticos da história do cinema. Nos bastidores de "Serenata
à Chuva", a cumplicidade do par romântico parecia só existir no
ecrã: Gene Kelly acusou, em várias ocasiões, a sua colega Debbie
Reynolds de não saber dançar. Irritada com a situação, a actriz
saía do estúdio a chorar e só os conselhos do bailarino Fred Astaire
a conseguiam recompor. Apesar de, no filme, a sua personagem Kathy
dobrar a voz de Lina Lamont, nas gravações dos números musicais
de "Would You?" e "You Are My Lucky Star", a voz escutada não
pertence a Debbie Reynolds, mas a Betty Noyes.