Vidas Inquietas
Quinta-feira, 23 de Dezembro de 2004

Entre o céu e o inferno

Um condutor de ambulâncias deixa-se dominar pelos caprichos de uma mulher aparentemente angelical. O realizador Otto Preminger filma, no seu estilo minucioso, uma história de amor levada até às últimas consequências. Por Rui Pedro Vieira

Teve uma das carreiras mais sólidas de Hollywood, mas Robert Mitchum sempre manteve a postura de quem entrou no universo do cinema por não ter alternativa. O eterno Max Cady de "O Cabo do Medo" chegou a admitir que odiava filmes e especialmente aqueles em que entrava. Já o realizador Otto Preminger pareceu não concordar com estas afirmações e conseguiu tirar partido da sua pose preguiçosa e do olhar semicerrado que escondiam um talento promissor. Em "Vidas Inquietas/Angel Face" (1953), Mitchum invade o ecrã como o jovem seguro que se deixa dominar pela insinuante presença de uma mulher, interpretada pela enigmática Jean Simmons.

Nesta história "noir", baseada na obra "Murder Story" de Chester Erskine, um romance é levado até às últimas consequências. O ritmo que Preminger institui no desenvolvimento emocional da narrativa é lento e dengoso, com espaço para as personagens exporem as fragilidades sem, contudo, revelarem as suas facetas mais íntimas.

Hoje, "Vidas Inquietas" é um filme de culto e uma das maiores obras do realizador que parecia tornar cada momento do seu filme numa cena passada num palco de um teatro. Preminger gostava de apresentar os meandros das suas histórias através da fluidez dramática e defendia o pragmatismo em vez dos grandes artifícios. Mas neste esforço por ser "objectivo", centrando-se no movimento, nos gestos e nas expressões dos protagonistas, o realizador de "Laura" e "Rio Sem Regresso" deixava passar uma ironia crua e extremamente realista.

A presença taciturna de Robert Mitchum insere-se na perfeição neste conto perverso em que as personagens principais se deixam consumir por obsessões, sem temerem as consequências dos seus actos. Mitchum é Frank Jessup, um condutor de ambulâncias que chega à mansão da família Tremayne para acudir o mal-estar de uma milionária, Catherine (Barbara O'Neil), que diz ter sido vítima de uma tentativa de assassinato com gás. Nessa noite, Frank conhece a bela Diane (Jean Simmons), a enteada de Catherine, que não o larga por um segundo.

A jovem caprichosa parece querer assumir um papel de destaque na vida de Frank, prometendo-lhe dinheiro para concretizar o seu sonho: ter uma oficina de carros desportivos. Em pouco tempo, o condutor de ambulâncias torna-se no motorista da família Tremayne e parece estar cada vez mais enredado na paixão sufocante da jovem que detesta a madrasta e sente um fascínio pelo pai, Charles (Herbert Marshall), um escritor famoso em crise criativa.

A mulher das duas caras

Aquilo que parece ser uma história de amor impulsiva e determinada pelas atitudes de Diane, a jovem do "rosto angelical" que figura no título original de "Vidas Inquietas", torna-se numa perigosa armadilha para Frank que, subitamente, se vê acusado de cumplicidade no crime que vitima a madrasta e o pai da protagonista. Esta inversão dramática desperta para o abuso dos sentimentos, moldados por uma crueldade cortante.

A actriz Jean Simmons tem, neste filme, uma das suas melhores interpretações e é através do olhar gélido e da falsa doçura dos seus comportamentos que conquista todas as personagens. Otto Preminger não a reduz à imagem de "femme fatale" e prefere transformá-la em alguém que "apenas" possui uma noção distorcida do amor. A protagonista Diane é educada, atenciosa e profundamente romântica. Não parece estar é disposta a abdicar de nada para alcançar a sua noção de felicidade.

A maturidade cinematográfica de Preminger pressente-se no constrangimento psicológico que Diane exerce sobre Frank. E logo no seu primeiro encontro o par protagonista começa por se esbofetear. É o sintoma de que algo de errado irá acontecer. Para bem do "film noir".

 
"O Mundo a Seus Pés"
DE ORSON WELLES

"Um clássico que revolucionou a indústria artística, nos seus reflexos de testemunho e de onirismo. A partir dele, nada se adiantou - sobre os desígnios do poder, a influencia dos meios de comunicaçao, a vagabundagem visionária, os mistérios e os fantasmas da infância..."
"As Duas Feras"
DE HOWARD HAWKS

"O exemplo perfeito das 'screwball comedies', num requinte de ambiguidades morais e sexuais. Um prodígio quanto a narrativa e ao diálogo, ao tempo de acçao, aos efeitos de surpresa, ao absurdo dos artifícios, ao carisma extravagante dos intérpretes."
"Os Dominadores"
DE JOHN FORD

"Uma vibrante celebraçao da saga 'western', tendo John Wayne num dos seus mais formidáveis desempenhos, com a fenomenal reavaliaçao de Ford, em que ao envolvimento de massas se recorta, afinal, o vulto solitário dos protagonistas."
"King Kong"
DE MERIAN C. COOPER E
ERNEST B. SCHOEDSACK


"Épico do terror-fantástico, e um dos clássicos primordiais de culto, mantém um sortilégio essencial: em magia, exotismo, aventura, 'suspense', pulsao erótica em que se transcende o mito entre a bela e o monstro. Eis o espectáculo virtual por excelencia."