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A FERNANDO PESSOA
Ser é corrigir
o que se foi,
e pensar o passado na garganta do amanhã.
É crispar o sono dos infantes,
com seus braços de inventar as buscas
em caminhos doidos e distantes.
É caminhar entre
o porto e a lenda
de um tempo dardejado contra o mar.
Domar o leme das nuvens onde mora
o mito e a glória de um Deus a naufragar.
Uma ovelha me ama de
repente.
O seu sono é para o sémen dos pastores,
que nela vão depondo com cuidado
seus suores, seus capins e seus amores.
Eu a tenho com vigor bem vagaroso
e sua baba à minha boca se condena,
e tanto meu desejo não se esquiva
quanto mais o seu berreiro me acena.
Amante e amada em grama e gozo confundidos
as espigas se envergonham, se vergando ao jogo aberto.
Permutamos nossa pele, confidências e ganidos,
o meu pénis se proclama nessa vulva que penetro.
. . .
Há um mar no mar
que não me nada
e não se entorna em ser espuma ou coisa fria.
Me sinto cheio de palavra e de formato,
murado em mim sob a ciência desse dia.
Na sonância do que vive,
minha fala é desistência,
e dizer é corroer o que se esquiva,
reter a letra a cicatriz do som vazio.
Sou apenas quinze avos da loucura
a dar um nome à ironia do que dura.
. . .
Uma palavra, outra mais,
e eis um verso,
Doze sílabas a dizer coisa nenhuma.
Esforço, limo, devaneio e não impeço
que este quarteto seja inútil como a espuma.
Agora é hora de
ter mais seriedade,
Senão a musa me dará o não eterno.
Convoco a rima, que me ri da eternidade,
Calço-lhe os pés, lhe dou gravata e um novo terno.
Falar de amor, oh pastora,
é o que eu queria,
Mas os fados já perseguem teu poeta,
Deixando apenas a promessa da poesia,
Matéria bruta
que não cabe no terceto.
Se o deus frecheiro me jogasse a sua seta.
Eu tinha a chave pra trancar este soneto.
ANTÓNIO CARLOS SECCHIN
in "26 Poetas Hoje".
Selecção e introdução de Heloísa Buarque
de Holanda
Editorial Labor do Brasil, 1976
207 páginas
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