MONTANHA
O Poeta repete-se, talvez
porque confunde
a melodia com a vida; no entanto, a repetição
da alma não lhe traz nenhum vislumbre
do precipício. Se observa as páginas
que voam à sua frente, reconhece o erro
de um visão engrandecida da literatura.
De cada vez que escreve incêndio
a chama não se acende no pensamento
e um calafrio percorre-o, lembrando-lhe
que o real constitui o terreiro onde se
negoceiam todos os sacrifícios da escrita.
Mesmo assim eram bem simples
as exigências que regiam a sua travessia
da poesia: por exemplo a imagem
da montanha que fora buscar a claridade
à doença que o prendera aos tabuleiros
coloridos da vida. Apesar das câmbrias,
da dificuldade em ver, descia pela palavra
ao fundo da mina. Mas a poesia
é uma escavação a céu aberto -
assombração que em nós se continua
no lugar em que se aboliu o mundo.
FERNANDO GUERREIRO
in "Gótico"
Black Son Editores, 1999
100 páginas