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I

Morreste, caro Aónio, puro amigo,
Génio tão doce na ferrenha idade
Em que sermos porção da Humanidade
Talvez mais que esplendor nos é castigo.

Triste, amável despojo, em teu jazigo
Pousou meu coração, minha saudade,
E, escuro como tua escuridade,
Sempre meu pensamento está contigo.

À fatal Solidão levou-te a Sorte,
Eu, retido por ela entre os viventes,
Como que já sofri o extremo corte.

Teu exterior e o meu não são diferentes:
Meus lábios, olhos, faces, tudo é morte...
Mas, ah! Que eu sinto, Aónio, e tu não sentes.

II

Meu ser evaporei na lida insana
Do tropel das paixões que me arrastava,
Ah! cego eu cria, ah! mísero eu sonhava
Em mim, quase imortal, a essência humana.

De que inúmeros sóis a mente ufana
A existência falaz me não doirava!
Mas eis sucumbe a natureza escrava
Ao mal, que a vida em sua origem dana.

Prazeres, sócios meus e meus tiranos,
Esta alma, que sedenta em si não coube,
No abismo vos sumiu dos desenganos.

Deus... ó Deus! quando a morte à luz me roube,
Ganhe um momento o que perderam anos,
Saiba morrer o que viver não soube!

III

Já Bocage não sou!... À cova escura
Meu estro vai parar desfeito em vento...
Eu aos céus ultrajei! O meu tormento
Leve me torne sempre a terra dura.

Conheço agora já quão vã figura
Em prosa e verso fez meu louco intento.
Musa! tivera algum merecimento
Se um raio da Razão seguisse pura.

Eu me arrependo; a língua quási fria
Brade em alto pregão à mocidade,
que atrás do som fantástico corria:

Outro Aretino fui... A santidade
Manchei! Oh! se me creste, gente impia,
Rasga meus versos, crê na eternidade!

MANUEL MARIA BARBOSA DU BOCAGE
in "Sonetos"
Ed. Europa-América, 1982
224 páginas
850$00

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