A credibilidade do clube media

Se há público atento à informação publicada, é o dos próprios jornalistas. Ler a concorrência, tomar nota do que ela fez melhor do que nós, sublinhar as notícias em que dá mostras de "andar a dormir", discutir os critérios seguidos por outros media para construir a hierarquia dos acontecimentos e descobrir nessa leitura pistas de informações a desenvolver são obrigações de qualquer redacção. Por dever de ofício os jornalista são hipersensíveis às notícias dos outros media. Tão sensíveis que por vezes tomam a nuvem por Juno e se obrigam a tratar informações só pelo facto de outros as terem publicado.
Todos sabemos, embora disso tenhamos consciência diversa, que nas nossas sociedades a actualidade não existe antes dos media a criarem. A actualidade tem como matéria-prima os acontecimentos, os factos, as opiniões e os personagens. Mas nada disso é actual antes de os media lhes terem imposto a sua hierarquia e publicitarem os acontecimentos organizados de acordo com a importância que lhes atribuem.
Contra este poder discricionário se levantaram as vozes que há um quarto de século denunciaram esta "conspiração", acusando o clube dos media de sofrer do autismo próprio de quem vive em circuito fechado.

O clube dos media é uma realidade de dupla face. De um lado e como convém às realidades de indiscutível importância, o clube não tem sede nem contornos definidos. Dele fazem parte não só jornalistas. Têm nele cartão de fidelidade políticos e fazedores de imagem dos ditos, analistas, intelectuais, artistas, amigos de uns, de outros e de já não se sabe quem, além de uma multidão de ex-qualquer coisa, frequentadores de hoje, porque frequentadores de ontem. É uma trama de relações, necessariamente nocturna, complexa e volúvel, tanto nos heróis que aplaude, como nos inimigos que elege,
Na outra face e à luz do dia, o clube tem as suas hierarquias: nem a todos os media se reconhece a mesma credibilidade. Mas quase todos tendem a dormecer na pachorrenta certeza de que os seus critérios de organização da actualidade são os melhores e a reagirem com sobranceria aos sinais de que não estão em consonância com o senso social que os envolve. Basta-lhes a autosuficiência de verem os concorrentes darem importância áquilo a que eles próprios atribuem prioridade. A repetição funciona aqui como suplemento de confiança na bondade da escolha feita por cada media. E uma mentira muitas vezes repetida...
Daí as justas acusações de autismo.
Mas se uns criticam o poder discricionário e autista da imprensa na criação da actualidade, outros apenas reagem contra ela por não disporem desse poder. Políticos de todos os quadrantes, empresários de importância vária, doutores de formações múltiplas, "bons espíritos" universitários e patrocinadores da imprensa popular dão as mãos em alegre convívio com o objectivo de descridibilizar a imprensa de qualidade (jornais, rádio e televisões), argumentando com a distância entre o publicado - aquilo que passou a fazer parte da actualidade - e a realidade. A sua táctica recorrente é simples. Consiste em generalizar os casos-escandâlo desta distância entre o que interessa aos media e o que interessa aos cidadãos, transformando-os de fenómenos acidentais na essência dos media.

Para não oferecer munições a estes impolutos defensores do "bom povo", as redacções procuram não estiolar nos cânones consagrados, exercendo a crítica aos preconceitos nelas estabelecidos e usando a criatividade jornalística para introduzir na actualidade acontecimentos e situações tradicionalmente ignorados. Entre si, os jornalistas determinaram a proibição do plágio e a obrigação de atribuir a informação a quem a primeiro a publicou. Nos últimos anos, contudo, prolifera a arte de reproduzir como sua e original, notícia cujo corpo pertence a outrém, mas a que se acrescentou um dedo mindinho. Os jornalistas do PÚBLICO reconhecem com frequência esta técnica em notícias de rádios e televisões. E irritam-se. Mas acomodam-se à máxima de que a imprensa impõe a agenda, a rádio cavalga os acontecimentos e a televisão mostra o que passou.

Não foi assim "no caso" da professora de Macedo de Cavaleiros. Quem deu a notícia de que uma professora da cidade fora suspensa por ter proposto o negócio de aumentar em dois valores a nota final dos alunos que lhe oferecessem os seus trabalhos de tapeçaria (estimados em algumas dezenas de contos) foi a RTP. Pedro Garias, correspondente do PÚBLICO na região viu a notícia, conhecia o jornalista da televisão que tinha obtido a informação e deu-lhe crédito. Pôs-se em campo. "Tentei durante todo o dia ouvir a professora visada, o director da escola e o aluno que fez a denúncia. Mas não consegui falar com ninguém. No jornal achou-se que o assunto, por ser grave e algo insólito, merecia ser tratado" - explica Pedro Garcias. Perante esta situação, o correspondente resolveu "fazer a notícia com base na peça transmitida pela RTP, uma vez que as declarações prestadas a esta televisão pelo director da Escola Jean Piaget, Armando Queijo, eram inequivocamente reveladoras da culpabilidade da professora, credibilizando, desse modo, os factos relatados. Essas declarações, que eu citei na minha primeira notícia, foram cortadas por quem paginou ou fechou a página da Educação, certamente por falta de espaço. Mas era importante que tivessem sido mantidas."

O clube media funcionou em pleno. Apesar de não ter confirmado nada da história divulgada pela RTP, o PÚBLICO deu-lhe crédito e reproduziu-a nas suas páginas. Com a agravante de, embora citando parcialmente a RTP, não esclarecer o leitor de que toda a informação tinha origem na notícia do jornalista da televisão pública. Mas a informação, afinal, estava errada. A professora não fora suspensa, os alunos da turma não confirmavam a história e acusavam o colega que terá sido a fonte de informação da RTP de "desonesto". Mais: fizeram um abaixo-assinado de desagravo da professora. Que fez o PÚBLICO? Uma notícia com destaque de última página cujo título desmentia a notícia da edição anterior, mas que no seu corpo propunha duas leituras: ou tudo tinha sido uma maquinação de um aluno, ou então a publicação de notícias sobre o caso tinha provocado uma reacção corporativa em que todos se uniram para escamotear a realidade. E deixava no ar a eventualidade de ser o sobredito cujo quem estaria agora em maus lençóis, adiantando a terrível informação de que a Inspecção-geral do Ministério da Educação já teria mandado instaurar inquérito aos factos.

Sobre tudo isto escreve Pedro Garcias em resposta a perguntas do provedor: "(...) reconheço que errei. Duplamente: primeiro, nunca poderia ter feito a notícia com base unicamente na peça da RTP. Só depois de ouvir as pessoas visadas é que deveria avançar com a notícia, nem que tivesse que esperar alguns dias. Segundo: tendo optado por noticiar o dito "negócio" com base na peça transmitida pela RTP, deveria ter deixado esse facto bem claro na notícia (Š). Quem leu a notícia não ficou com essa ideia." É verdade que ele mesmo procurou ouvir toda a gente envolvida (no próprio dia em que a notícia foi publicada) e, com base no que lhe disseram, procedeu ao desmentido dos factos que antes dera como verdadeiros. Mas não se coibiu de oferecer duas interpretações para a "alteração" dos factos relatados sobre o "negócio das tapeçarias".

Escreve o leitor António Maria Lima Ferreira, de Vila do Conde, como conclusão das duas notícias que - desconhecendo os pormenores da sua elaboração - viu o seu jornal publicar em duas edições consecutivas: "(Š) Por tudo isto não será de duvidar do Œrigor e aprumo profissional¹ [do jornalista] e estarmos até perante Œcomportamento incorrecto¹ e quem sabe senão Œleviano¹ que motivou que uma notícia dada com sensação tenha, 24 horas depois, que ser dementida? Teve-se em consideração o direito à boa imagem e reputação? Agora que consequências advirão? O bom conceito de que o PÚBLICO na generalidade colhe não pode permitir-se a tanto. ŒP. G.¹ [assinatura de Pedro Garcias], salvo melhor opinião, converteu ŒTapeçarias¹ numa autêntica trapalhice."

Certeiras são as questões de António Lima Ferreira, dura a sua crítica e arrasadora a sua ironia. Mas tem toda a razão. No PÚBLICO validam-se as informações antes de as reproduzir. E se, por boas ou más razões, se dá credibilidade a notícias publicadas num outro media, atribui-se-lhe a informação. Nunca esquecendo que - mesmo no caso limite de citar agências de informação - é o PÚBLICO quem está a fazer-se eco de tais informações.


Texto de Jorge Wemans


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