Fotos cegas, registos absurdos

A discussão sobre a justeza dos critérios de escolha das fotografias que ilustram alguns dos textos do PÚBLICO ocupou toda esta coluna no dia 6 de Julho. A questão fora levantada pelo leitor Carlos Neves Simões, de Faro, desgostoso com o critério "pimba" que sentia ser o do seu jornal nesta matéria e cansado de ver o PÚBLICO propor-lhe imagens de personagens públicos em atitudes menos dignas.
Álvaro L. A. Pina, leu a coluna do provedor, mas viu também o trabalho editado pela PÚBLICA desse mesmo domingo sobre Garcia Pereira. E enviou e-mail ao provedor: "Nem de propósito! No mesmo dia em que o provedor do leitor reflecte sobre a função e o significado da fotografia na produção de notícias do PÚBLICO, a PÚBLICA dá, na sua página 41, um interessantíssimo contributo para a discussão do tema, ilustrando (e comentando) o título "O mundo segundo Garcia Pereira" com a representação do entrevistado com um olho fechado e o outro tapado.
Mas se se admite sugerir que Garcia Pereira não vê nem quer ver, porquê entrevistá-lo?"


Após ter estabelecido aquela leitura da foto, Álvaro Pina faz um convite: "Sabemos que a relação entre a realidade e as notícias (e todos os textos jornalísticos) é sempre uma relação discursiva, de produção de significados. E que numa imprensa livre os jornalistas são livres (dentro dos limites impostos pela orientação dos jornais). Mas o senhor provedor não colocou a discussão do tema nessa base [na referida coluna de 6/7/97], e tendo diluído a sua argumentação no respeito pela essência dos acontecimentos e pela dignidade dos fotografados, convido-o a pronunciar-se sobre a fotografia de Garcia Pereira na pág. 41 da PÚBLICA de 6/7/97."

Por que escolheu, Áurea Sampaio, editora da PÚBLICA, aquela foto como ilustração de arranque da entrevista? Escreve a própria: "A escolha da foto para ilustrar a entrevista a Garcia Pereira não tem nada de conspirativo. Trata-se de um gesto característico que o personagem repete vezes sem fim e que acaba por se lhe colar, quase como uma marca. Passa-se exactamente o mesmo com António Guterres quando ajeita a melena. Podem fazer-se leituras psicológicas, análises políticas, conjecturas freudianas sobre as razões dos gestos de cada um? Eventualmente... mas isso, por si só, não serve para depreciar uma personagem."
E, aproveitando a interpretação do leitor, a mesma editora esclarece: "A PÚBLICA não entrevistou Garcia Pereira com esse intuito (o de o Œdepreciar¹, mas justamente pelo contrário. Ou seja, por considerar este advogado e dirigente político um homem brilhante, independentemente da sua visão muito particular sobre a História e os grandes temas da actualidade."
Já agora que se fala do assunto, Áurea Sampaio revela um episódio da edição do referido trabalho: "Uma pequena história sobre as fotografias da entrevista evidencia bem o nosso desejo de não deslustrar o entrevistado. Às tantas, surgiu a ideia de plasmar sobre a foto de abertura do texto um conhecido "slogan" do MRPP. Discutida a questão, a proposta foi rejeitada pela editoria da revista, não só por se considerar que tal poderia ser entendido como uma forma de caricaturar a personalidade de Garcia Pereira, mas também (e sobretudo) porque seria redutor de uma figura cujo interesse está muito além do partido político a que pertence."

Quanto a intencionalidades subjectivas estamos conversados. Mas Álvaro Pina pergunta pelo significado - ou, no mínimo, pela sugestão de comentário - que a fotografia escolhida introduz na leitura da entrevista. Ora, como o leitor saberá melhor do que eu, a produção de significados não é um processo fechado, unilateral e universal, controlado totalitariamente pelos autores do discurso. Tal como a arte, a produção jornalística inclui esse risco e esse fascínio: cada leitura que dela é feita recria os sinais próprios da sua escrita e atribui-lhes significados diversos. Essa pluralidade de leituras é antecipável por aquilo que, sem mais, designaríamos por senso-comum. Em jornalismo, o quadro da reflexão ética e deontológica tem, forçosamente, de se situar no terreno negativo da auto-interdição da produção de significados que, nessa matriz do senso-comum, lesem a dignidade (e todos os outros direitos) dos cidadãos - na sua qualidade de visados ou de leitores.
A referida foto suscitou em Álvaro de Pina uma segunda leitura que só pode ser lícita, visto que ele a fez. Não foi essa a intenção declarada de quem assim compôs o trabalho lido pelo leitor. Não creio que Álvaro de Pina defenda ser a sua leitura, a leitura possível, mas uma entre várias. E sustento, com a editora da PÚBLICA, que a sua leitura é muito particular. Em favor do que defendo, recordo apenas uma das mais emblemáticas e significativas fotografias (de Luísa Ferreira) reproduzidas no PÚBLICO: Paula Rego, mão na cara, apenas um olho meio estrábico, olhando de viés. Queria o jornal significar que a pintora não era capaz de encarar a realidade, ou, ao contrário, adensar a força da personalidade que olha a realidade?

A socialista Edite Estrela, presidenta da Câmara Municipal de Sintra, enviou ao provedor e ao director do jornal cartas diferentes com o mesmo conteúdo. Não elucidou um da correspondência com o outro e vice-versa. A missiva foi publicada nas Cartas ao Director de 16/7/97. Com curta nota do editor da política, João Fragoso Mendes. O mesmo que enviara um texto ao provedor do leitor em resposta a questões postas por este a propósito da referida queixa de Edite Estrela. A edil manifesta-se contra o facto de o PÚBLICO ter reproduzido acusações de um comunicado do PCP sem ter ouvido os responsáveis da Câmara de Sintra. No comunicado divulgado pelo jornal, o PCP local manifestava-se contra um alegado boicote que a Câmara lhe estaria a fazer, chegando ao cúmulo de "contratar marginais" para destruirem a sua propaganda.

Na nota da redacção publicada junto da carta de Edite Estrela, João Fragoso Mendes (JFM) defende a bondade de uma prática jornalística que levou à edição de tal notícia. Para tal usa argumentos idênticos aos com que responde às questões colocadas pelo provedor sobre a dita notícia. Em síntese e segundo Fragoso Mendes: a notícia foi publicada na secção criada para a cobertura da campanha autárquica intitulada "registo", na qual, desde que devidamente atribuídas as afirmações se dispensa "a obrigatoriedade de ouvir a outra parte." (sic)

Errou o PÚBLICO três vezes. Quando publicou a notícia. Quando inseriu uma resposta de JFM à carta de Edite Estrela. Quando defende que existem casos em que se podem reproduzir acusações sem ouvir a versão dos nelas acusados.
Não há, no jornalismo que o PÚBLICO pretende defender - e se compromete junto dos seus leitores a praticar - lugar para a reprodução de quaisquer acusações dispensando a audição dos visados. Entre o PÚBLICO e os CTT's há uma diferença fundamental: é que neste jornal não se entregam mensagens - sejam elas emitidas por quem quer que seja. No PÚBLICO validam-se mensagens antes de as reproduzir. E para as validar é sempre necessário ajuizar sobre a sua importância, actualidade e veracidade. Ora, a veracidade dos factos impõe a sua contradição pela parte visada. Ponto.
Os leitores do PÚBLICO não aceitam que o seu jornal lhes transmita o que alguém diz ou pensa sobre factos controversos. Esperam que, no mínimo, o seu jornal os informe sobre as diferentes razões que assistem aos diversos actores que intervêm na produção dos factos. E não há, no jornal, uma única secção em que tais normas possam ser derrogadas.
Em relação à queixa de Edite Estrela o PÚBLICO só poderia: 1) reconhecer o erro cometido; 2) Pedir desculpa, na pessoa da presidenta, à Câmara de Sintra pelo lapso; 3) Editar com redobrada atenção a dita secção "registo".
Já que os pontos 1) e 2) parecem prejudicados pelos acontecimentos, espera-se que quanto à alínea 3) a editoria da política repense os seus critérios de edição da secção "registos"..


Texto de Jorge Wemans

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