A conversa do presidente

No final de Abril, a jornalista Cesaltina Pinto e o repórter fotográfico Adelino Meireles deslocaram-se à freguesia de Rabo de Peixe, na ilha de São Miguel, nos Açores. Sobre os objectivos com que para lá partiu e as impresssões que recolheu durante o tempo que ali ficou, escreve a jornalista: "Fui a Rabo de Peixe com a intenção de fazer uma reportagem sobre uma turma do 1º ciclo praticamente composta por alunos dos 13 aos 16 anos - fruto de insucesso escolar sistemático e do recente rendimento mínimo garantido. Mas a realidade que lá encontrei foi tão surpreendente, que considerei impossível falar dessa turma sem descrever todo o meio social que a envolvia. Passei três dias completos em Rabo de Peixe e só não falei com o padre da freguesia. Nunca vi uma zona populacional tão pequena onde se concentrasse tão grande número de problemas - alguns deles contraditórios e até inexplicáveis."
Os textos e as fotografias da reportagem ocupavam 7 páginas da revista PÚBLICA de 18 de Maio sob o título genérico "Rabo de Peixe - A lógica do irracional". São retratos de enorme "pobreza, mais social e cultural do que financeira" inseridos numa espiral de marginalidade, de degradação pessoal e social e de violência. São histórias sem saída.
As poucas explicações que a jornalista apresenta para aquilo que observa têm o condão de não explicarem quase nada e a autora é a primeira a sublinhá-lo. Ao longo dos textos a simpatia do leitor apenas é convocada em relação às figuras de alguns professores e assistentes sociais. Mesmo os miúdos de Rabo de Peixe são-nos apresentados como mentirosos, violentos, preferindo a marginalidade e o imediato, fiéis reprodutores do meio em que vivem.

Nunca fui a Rabo de Peixe. Mas o quadro local já me fora traçado por várias pesoas conhecedoras daquela realidade por razões profissionais diversas. Apesar disso, o retrato genérico pintado por Cesaltina Pinto chocou-me. Não pela crueza da reportagem ou pela violência das situações retratadas - outras conheço em que a degradação pessoal atinge, se para elas existe unidade de medida, níveis mais desumanos. O choque provocado pela reportagem nasce de toda ela se inscrever num registo em que nunca um olhar de piedade fácil nos é proposto. A jornalista faz um exercício de contenção dos seus sentimentos e contorna os habituais reflexos da compaixão primária: ninguém é desculpado pelas suas circunstâncias; as crianças não são vítimas, são actores do seu modo de vida; tudo o que se tentou fazer para alterar as situações deu em nada; o futuro daquelas gentes será igual ao seu passado. O círculo fecha-se e nem um só exemplo de alguém que tenha conseguido libertar-se da "maldição" de ter nascido em Rabo de Peixe nos é dado.

Quem não gostou de assim ver retratada a "sua" freguesia foi o Presidente da Junta de Freguesia de Rabo de Peixe, Eduardo Vieira Brum. Enviou carta à Direcção do PÚBLICO e pediu que o Provedor se pronunciasse sobre a reportagem. No mesmo sentido, a Direcção solicitou ao Provedor que tratasse do assunto.
Eduardo Vieira Brum queixa-se da autora em duas vertentes: da sua "nítida má-fé para com" aquela "populosa freguesia dos Açores", bem como da sua vontade em distorcer "as realidades da vivência local com uma série de mentiras e asneiras, impróprias para um jornal sério"; e da forma como ele próprio é tratado na entrevista publicada junto com a reportagem.

Acusando Cesaltina Pinto de bater todos os recordes "na maldicência e no insulto a um povo", Eduardo Brum faz o seu balanço: "Referências insultuosas à população desta localidade preenchem os textos da dita senhora, com uma série de asneiras sobre as potencialidades locais, nomeadamente aquela de dizer que a ŒCofaco¹ é a única entidade empregadora de Rabo de Peixe." Não concorda a jornalista: "Nunca foi minha intenção usar de "má-fé" ou fazer "referências insultuosas". Nem encontro no(s) texto(s) em causa, nem uma, nem outras. A realidade nua e crua é que, por vezes, pode ser insultuosa. Quanto à acusação de Œasneiras sobre as potencialidades locais¹, aceito-a como sendo a opinião do presidente da Junta. Reafirmo que Œa Cofaco é a única entidade empregadora da região¹, com expressão e significado (Š)".
Naturalmente que Eduardo Brum tem a sua razão. Apesar de ele próprio ter confessado à jornalista a sua derrota - "não me recandidato [à autarquia] (Š) porque não consigo resolver nada" -, acha que os seus fregueses não se reduzem ao retrato infernal que deles dá a PÚBLICA. Pode acusar a jornalista de não ter desenhado um panorama completo da freguesia. Mas será o primeiro a reconhecer que os casos evocados por esta não são falsos, nem laterais à vida local. E não há lugar a "má-fé" quando uma reportagem se organiza de roda do aspecto que os interlocutores locais (incluindo o próprio queixoso) consideram ser o mais marcante.

Quanto à entrevista, Eduardo Brum é mais taxativo: "É falso que eu tenha dito (Š) que desconhecia a existência nesta freguesia de uma valência pré-escolar na Escola Luísa Constantino, ou que não sabia distinguir o antigo secundário do 3º Ciclo. Aliás, praticamente toda a suposta entrevista é inventada pela Srª Cesaltina." Responde a visada: "É a minha palavra contra a dele. Não tenho gravação, apenas as minhas notas. E nada escrevi que não tivesse anotado. Quando confrontei o episódio com as professoras e assistentes sociais de Rabo de Peixe, ninguém se espantou com o meu espanto." Ficam os leitores a conhecer a opinião do presidente, já que quanto ao trabalho da jornalista o conhecem de há muito. E mais não pode escrever o provedor.

"Que interessa na suposta reportagem que, encontrando-me doente, [a jornalista] me encontrasse em casa de roupão e goze com a pronúncia das gentes desta freguesia?" questiona Eduardo Brum a quem também repugna a referência feita às suas "pernas peludas". Percebe-se o desconforto do presidente da junta perante a imagem que dele dá o texto em que são reproduzidos alguns excertos da conversa tida com a jornalista: homem de grande familiaridade com os seus fregueses, de olhar condescendente sobre os "costumes" enraizados, consumindo a sua função no distribuir fundos e "passar papel", inseguro no que toca à organização do ensino e ao planeamento familiar, derrotado pela realidade e momentaneamente adoentado. Quando se olha ao espelho não é asim que se vê. Não se revê na imagem reproduzida na PÚBLICA.
Mas foi essa a imagem que produziu na jornalista: "Optei por um registo diferente ao relatar a conversa - nunca foi suposto ser uma entrevista, no verdadeiro sentido do termo - com o presidente da Junta, por todo o insólito da situação. Primeiro, pela confusão que o presidente da Junta estabeleceu ao pôr a hipótese de ter de pagar a Œentrevista¹. Depois, por todas as contradições que estabeleceu no seu discurso (...) Através do retrato deste personagem, melhor poderá o leitor concluir sobre toda a realidade social daquela freguesia, em muitos aspectos quase indescritível. Procurei o presidente da Junta em busca de informação, mas depois considerei todo o encontro significativo para compreender a situação de Rabo de Peixe."

Do ponto de vista formal a conduta de Cesaltina Pinto é eticamente irrepreensível: não arrombou a porta de casa do presidente da junta, foi ele que a convidou a entrar; apresentou-se como jornalista e explicou ao que ia; registou a pronúncia local não achincalhar o seu interlocutor, mas para - como é corrente no PÚBLICO - aproximar o leitor à sonoridade própria do personagem; refere o físico do entrevistado apenas para relevar um momento de desconforto, numa conversa de circunstâncias pouco normais.
Na substância das coisas: a jornalista reduziu o homem a um símbolo mais, convergente com tudo o que observou em Rabo de Peixe durante três dias. Acontece que o homem não é só esse símbolo. E é desmesurada a desproporção entre a inocente hospitalidade do presidente - que não lhe permite fechar a porta à jornalista ou recusar conversar com ela - e os recursos em conhecimentos e capacidade de observação exibidos por esta. Resultado: Eduardo Brum sente que abusaram da sua boa-fé. Mas foi ele próprio que não percebeu que ao receber e conversar com a jornalista estava a convidar para sua casa e a falar com todos os leitores do PÚBLICO. Cesaltina Pito deu de barato que um presidente de Junta de Freguesia é um personagem público necessariamente conhecedor das implicações de qualquer entrevista. Enganou-se. Ofereceu, por ventura, aos seus leitores um retrato autêntico do presidente da Junta de Freguesia de Rabo de Peixe. Não sem, percebe-se agora, ter abusado da boa-fé do seu interlocutor.


Texto de Jorge Wemans


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