Dois mais dois são cinco

O jantar de apoio ao lançamento da candidatura de José Gama à Câmara de Coimbra constituiu um novo marco neste tipo de organizações da família social-democrata da região. Onde o próprio Cavaco Silva juntara há anos menos de três mil pessoas, Gama jantou, na noite de 23 de Maio, com cerca de 3300 apoiantes, reunindo a fina flor da elite laranja local e nacional. Na edição de domingo 25 de Maio, o PÚBLICO dava conta do evento com um antetítulo "Três mil pessoas no jantar de apoio ao candidato laranja de Coimbra", mas no "lead", o jornalista Carlos Picassinos escrevia: "Não fora o estrondoso número de 3300 pessoas e o jantar (...) teria sido uma decepção."
Alberto Almeida, leitor de Almada, sentiu que estavam a brincar com ele. Nunca tal se vira em Coimbra e o PÚBLICO afirmava que o acontecimento andara perto da decepção?! Logo no antetítulo, traindo a sua vontade de distorcer os factos, "roubava" 10 por cento das presenças! Dois mais dois são quatro e o jornal procura motivos para escrever que são cinco! Escreve Alberto Almeida, referindo-se a Carlos Picassinos: "Pergunto: este senhor é jornalista? Comentador? Cronista? Ou será mais um que se serve do jornal como meio de propaganda do seu partido?" E conclui: "Assim não. Quando leio a Manuela Ferreira Leite, o Augusto Santos Silva, José Ribeiro e Castro ou outros como o Frei Bento Domingues, sei o que representam e é assim que os leio. Agora assim, não. Os dados estão viciados."

Factos são factos, opinião é opinião. Logo no primeiro ponto do seu Código Deontológico os jornalistas portugueses reafirmam-no: "A distinção entre notícia e opinião deve ficar bem clara aos olhos do público." Ao ler no "lead" do referido texto que "O discurso de José Gama não brilhou" e que "Marcelo repetiu quase à náusea que o Governo não governa", Alberto Almeida sentiu-se perante opiniões e não perante factos. Não gostou.
Defende Carlos Picassinos: "Não creio que após a leitura do texto se possa concluir que, como diz o leitor, os dados estão viciados." E esclarece os antecedentes da reportagem: "o pressuposto era a elaboração de uma pequena reportagem sobre o jantar de José Gama. (Š) sustentada na importância que o PSD nacional tem vindo a atribuir a Coimbra na cruzada autárquica; dada a presença anunciada de grande número de figuras nacionais do partido e na dimensão inédita em Coimbra de um tal evento. Tudo razões prováveis para optar por uma reportagem e não por uma mera notícia." Assim partiu para a cobertura do referido jantar, convicto de que "o que se espera de uma reportagem são as impressões e as sensações retiradas pelo jornalista, "o retrato da situação". Recorro ao Código Deontológico - "O jornalista deve informar os factos com o rigor e exactidão" mas, sublinho, Œinterpretá-los com honestidade¹". E conclui a sua reflexão sobre a queixa de Alberto Almeida: "Caro leitor, presuma da minha honestidade através da releitura do texto. Não encontrará por certo bandeiras hasteadas ou distribuição de propaganda."

Factos são factos, opinião é opinião. Mas há várias décadas que, entre factos e opinião, o jornalismo descobriu a necessidade da interpretação dos factos como necessária à comunicação. Assim, por exemplo, não basta divulgar o valor da inflação no último mês, é preciso situá-lo na evolução dos últimos meses, estabelecer a comparação com a inflação de outros países, identificar as causas externas e internas que o explicam, conjugá-lo com outros indicadores económicos, avaliar a sua relação com as expectativas dos agentes e analistas económicos, do Governo e da oposição, antecipar as suas consequências sobre eventuais inflexões da política económica, etc... Interpretar os factos e fornecer uma chave de leitura do seu significado é uma exigência do tipo de jornalismo de que o PÚBLICO se reivindica. É disso que se trata, quando no Livro de Estilo se escreve: "A informação complementar e diferente, o "background" e a protagonização da notícia, a análise e a interpretação indispensáveis à sua compreensão integram e distinguem o estilo do PÚBLICO."

Mas esta é uma opção que comporta riscos. Vale a pena maçar o leitor com uma outra citação (longa) do mesmo Livro de Estilo: "Tal como não existe objectividade em estado puro, não existem fronteiras absolutas entre informação, interpretação e opinião. De qualquer modo, há três níveis essenciais na construção dos textos jornalísticos: a apresentação dos factos - a informação -, o relacionamento desses factos - a interpretação - e o juízo de valor sobre esses factos - a opinião.
Na notícia predomina a apresentação dos factos. É uma evidência que decorre da própria estrutura da notícia, do seu espaço e do seu tempo. Espaço curto, tempo imediato. (Š) a notícia não dispensa o enquadramento básico dos factos no contexto em que eles ocorrem, ou seja, o "background". E esse enquadramento pressupõe, naturalmente, a capacidade de interpretar aquilo que é mais relevante e significativo para uma apresentação rigorosa e sugestiva dos factos.
É na reportagem e no inquérito que a interpretação dos factos encontra a sua expressão mais adequada e desenvolvida. Mas essa interpretação tem, frequentemente, uma fronteira difusa com a opinião, na medida em que a subjectividade do olhar do jornalista se projecta sobre os acontecimentos e situações que observa e descreve. Aí intervém a necessidade da distanciação e a preocupação da imparcialidade. Interpretar não é julgar, mas explicar o porquê e o como das situações."

Carlos Picassinos escreve uma reportagem que será lida 36 horas depois de rádios e televisões terem divulgados os factos a que ela se refere. Enfrenta um problema típico do jornalismo escrito, origem de não poucos enviesamentos: a relação com os acontecimentos da "hora fria". No tempo que se segue (ou coincide) com a hora de fecho de uma edição, os factos "pertencem" a outros media que não aos jornais, condenados que estes estão a só os tratarem na edição do dia seguinte, muitas horas depois de rádios e televisões terem levado tais factos ao conhecimento da opinião pública. São conhecidas as perversidades introduzidas nos jornais pelo síndroma da "hora fria": factos que não se noticiam porque "a rádio já deu" ou notícias em que já nem se referem os factos originais, mas apenas se escreve sobre as reacções que a sua divulgação pelas televisões desencadeou. Tudo comportamentos de desrespeito pelo leitor a quem se obriga a consumir outros media para poder perceber o que o jornal lhe comunica (ou não comunica).
O jantar de apoio a José Gama decorreu no tempo desta "hora fria". Razão que também deve ter pesado na opção de preferir uma reportagem à simples notícia condenada ao estatuto de "informação requentada" pelo simples facto de só poder ser lida transcorridas 36 horas após os factos nela reportados. Boa opção editorial, portanto. E Carlos Picassinos não se deixou enlear pelo referido síndroma: os factos principais estão na reportagem que assina, só omitindo a informação sobre o lugar onde se realizou o jantar. De resto, o texto mostra o significado das presenças (incluindo um extenso parágrafo em que nomeia os nomes mais sonantes), bem com o das poucas ausências e sustenta a interpretação que faz dos discursos com o (des)interesse manifestado pela plateia: "o burburinho" que obrigou José Gama a pedir silêncio e o facto da intervenção de Marcelo não ter ganho "muitas palmas".

O jornalista cumpriu assim o dever de justificar a interpretação dos factos. A sua reportagem só pecava por não oferecer ao leitor a interpretação dos próprios organizadores quanto ao sucesso da iniciativa. Restam duas questões: a honestidade e a credibilidade da reportagem. A primeira releva da eventual ocultação, consciente ou inconsciente, de factos presenciados pelo jornalista e que contrariem a sua interpretação. Por ela (e pela consequente manipulação) só Carlos Picassinos pode responder - como o faz no texto acima reproduzido. Quanto à credibilidade da sua reportagem, ela não decorre apenas da análise interna do texto e de nele se exporem os factos que a validam, mas aponta para algo mais vasto e que lhe é em certa medida externa: a credibilidade de um jornalista ou de um jornal radica também no critério simples da frequência com que a sua interpretação dos factos é certa e certeira.


Texto de Jorge Wemans

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