A raça de Wouden

O Título era "Wouden no Boavista" e no primeiro parágrafo escrevia-se: "Romeo Wouden, de 26 anos, um negro originário do Suriname que joga ao ataque, à esquerda e no meio, e que marcou cerca de 70 golos em 225 jogos da I Divisão holandesa, deve assinar pelo Boavista." A notícia saiu na página 33 - editoria "Desporto" - assinada "M.M./M.Q." (Manuel Mendes e Manuel Queirós), na edição de 15 de Maio.
O leitor Nunes Carneiro manifestou a sua surpresa por e-mail: "A origem da minha surpresa é o facto de os jornalistas terem evidenciado a côr e não a profissão de Romeo Wouden." E pergunta: "O que aqui importaria salientar era, do meu ponto de vista, a sua condição de futebolista e não a sua côr. (...) Será legítimo pensar que, no futuro, poderemos ler no PÚBLICO: ŒEusébio, o negro que marcou três golos¹ ... "Bill Clinton, o branco que preside aos EUA...¹? Não haverá aqui algo de errado?"

A raça de cada pessoa, bem como o seu credo, sexo, nacionalidade, etc..., não constitui segredo, nem é necessariamente uma informação despropositada. Mas é sempre referência a evitar quando não é relevante para a notícia. Porquê? Por ser um modo subtil de induzir a interpretação de que determinada prática, ideia, característica ou costume pessoal é própria de todos os indivíduos dessa mesma raça, credo, sexo ou nacionalidade.
Prescreve o Código Deontológico: "O jornalista deve rejeitar o tratamento discriminatório das pessoas em função da cor, raça, credos, nacionalidade ou sexo."
Reforça o Livro de Estilo do PÚBLICO: "O PÚBLICO recusa todos os estereótipos e preconceitos de linguagem que firam a sensibilidade comum em assuntos que envolvam a idade, a raça, a religião ou o sexo. Ninguém deve ser qualificado pela sua origem étnica, naturalidade, confissão religiosa, situação social, preferências sexuais, deficiências físicas ou mentais - excepto quando essa qualificação for indispensável à própria informação."

Manuel Queirós, editor do Desporto, achou que a referência à cor da pele de Romeo Wouden era indispensável. Porquê? Pela simples razão de que "o Suriname, sendo um ponto de confluência de várias raças, resulta em cruzamentos vários. Para os leitores, essa referência pode ter alguma utilidade na forma como imaginam o jogador que em breve alinhará numa das nossas boas equipas. Da mesma forma que se se tratasse de um jogador africano e branco, a menção da raça seria obrigatória na notícia, porque normalmente os africanos são negros."
De facto, a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira escreve sobre o Suriname: "Nome adoptada pela Guiana Holandesa quando ascendeu à independência em 25-XI-1975. Com uma superfície de 163 820 km2 e uma população de 370.000 Habitantes (1984) - onde se incluem hindus (37%), crioulos ((31%), javaneses (15%), negros (10%), ameríndios (3%) e chineses (3%) - o Suriname é limitado a N. pelo oceano Atlântico, a E. pela Guiana Francesa, a S. pelo Brasil e a O. pela Guiana. (Š)"

Mas não foi esta a única razão que levou Manuel Queirós a escrever e editar uma notícia em que dava relevo à raça do jogador. Recorda o editor: "Ettore Messina, seleccionador de basquetebol da Itália, disse aqui há uns anos ao PÚBLICO, que a Europa nunca poderia ter um nível de básquete igual ao dos americanos, simplesmente porque "não tem pretos". Ou seja: as condições físicas da raça negra são diferentes das das outras raças e, em determinados desportos (ou em determinadas características) imbatíveis. Há até estudos que provam a existência de consideráveis diferenças dentro da raça negra quanto às fibras rápidas ou massas musculares." E Manuel Queirós é categórico: "O exemplo dado pelo leitor, referente ao Eusébio, é um bom exemplo: é impossível imaginar um Eusébio branco. Nenhum homem de raça branca consegue ter a agilidade combinada com a potência e a força que tinha o melhor jogador português de todos os tempos."
Nesta ordem de ideias, é relevante a referência à origem rácica de um qualquer jogador africano ou afro-americano, pois, na posse dessa informação, o leitor pode antecipar as características genéricas que o seu modo de jogar mostrará.

Em tempos, outro leitor acusava o PÚBLICO de ter aderido ao "politicamente correcto" na medida em que apenas referia a côr da pele dos jovens negros dos bairros suburbanos de Lisboa quando estes eram vítimas de alguma agressão, omitindo-a quando eram acusados da prática de violências. O critério do jornalista baseava-se no facto de eles serem objecto de violência por causa de serem negros (daí a relevância informativa da cor da pele) e de praticarem crimes não como afirmação da sua raça (nem contra outra raça), mas apenas como resultado da interacção entre a sua individualidade e as suas circunstâncias.
A impossibilidade de comunicar o significado dos factos sem referir o género, raça, credo ou nacionalidade dos personagens neles envolvidos é, por vezes, evidente. No Líbano, um ministro ser católico, não tem o mesmo significado do que se for maometano. Na Guiné, um qualquer responsável público branco deve ser como tal referido, pois a omissão da cor da pele do personagem tornará a notícia imperceptível.
Mas nem sempre é assim. E, nesta matéria, o pior conselheiro do jornalista é o senso comum onde se sedimentaram preconceitos ancestrais. O dever de não discriminar obriga a questionar se a notícia perde rigor, clareza e veracidade caso se omitam as referências ao género, raça, credo ou nacionalidade dos intervenientes. Se não for indispensável para a compreensão dos factos, mais vale não evocar essas qualificações.


Texto de Jorge Wemans

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