Conflito de interesses

Quatro "cartas ao director" publicadas na última semana sobre as repercussões do programa "Donos da Bola" em que a SIC divulgou acusações contra alguns jogadores da selecção nacional de futebol obrigam a reflectir na relação que os leitores do PÚBLICO estabelecem entre vida privada e interesse público e entre denúncia ética e confirmação da informação. A multiplicidade de reacções ao dito programa difundido no dia 2 de Maio já forneceu a qualquer leitor mais desprevenido matéria suficiente para sobre ele formar a sua opinião. Nesta coluna cabe, no entanto, perguntar qual o grau de coincidência das percepções que leitores e jornalistas do PÚBLICO têm quanto a regras éticas básicas que delimitam a comunicação que entre eles se estabelece diariamente.

Direito à privacidade e comunicação social são dois pólos de uma tensão permanente que não pára de se agudizar ao longo dos últimos anos. Respeito pelo direito à intimidade do cidadão e dever de informar são dois princípios essenciais que cada vez mais surgem em conflito aberto. Nenhum estudioso destas questões se lhes refere ousando propor solução fácil e universal. Todos convergem para a necessidade de avaliar as situações concretas. Se a complexidade dos conflitos em causa não se compadece com a aplicação matemática de doutrina genérica e abstracta, tal não significa que a ponderação de cada caso remeta para um terreno virgem em que cada jornalista toma decisões como lhe apetece. Pelo contrário, sendo um dos conflitos mais actuais e relevantes do jornalismo, a inexistência de decisões pré-fabricadas obriga a uma consciência mais atenta aos princípios e às práticas seguidas na matéria.
A regra simples de que apenas o interesse público permite ao jornalista violar o direito à privacidade de qualquer cidadão, complica-se quando se procura definir o que será isso do "interesse público"? Certo é que ele não se confunde com o mero interesse (curiosidade) do público. E nem todas as revelações da intimidade são violações: cresce o número de figuras públicas ou de candidatos a figura pública que, por sua iniciativa, expõe na praça pública aspectos, mais ou menos vastos, da sua intimidade. Como, fundadamente, os eleitores reconhecem que as decisões dos eleitos podem depender mais daquilo que são do que daquilo que pensam, cresce a exigência do conhecimento do carácter dos candidatos à delegação de poderes. E o carácter destes revela-se com maior nitidez na sua vida privada...
Toda a pressão para a diluição da fronteira vida privada-vida pública desaparece quando alguma figura pública se opõe à divulgação de pormenores da sua vida privada. Neste ponto só o "interesse público" pode levar o jornalista a denegar-lhe esse direito. E, como estamos perante uma situação e conflito de interesses, o "interesse público" deve aqui ser entendido na sua versão mais restrita. Assim, uma informação sobre a vida privada de uma figura pública só deve ser considerada do interesse público se a sua não publicação conduzir a opinião pública a formular juízos não suficientemente fundamentados sobre a referida pessoa.
Não são apenas os eleitos que ocupam a cena pública. Basta recordar a frequência com que a publicidade recorre a jogadores e treinadores de futebol para perceber como estes gozam do estatuto de figuras públicas. Mas nem toda a figura pública está obrigada a viver de acordo com a moral vulgarmente aceite. A sua vida privada só tem interesse público se revelar contradição com o que pretende representar e defender em público.

A denúncia pública de comportamentos privados tidos como eticamente reprováveis pelo jornalista, sujeita-se ao crivo dos princípios éticos que cada figura pública evoca na sua face pública. Mas tal denúncia não se pode isentar da confirmação das informações obtidas. A indignação ética é uma excelente motivação jornalística. É razão necessária para investigar. Não é razão suficiente para divulgar. A indignação (quando ela existe) não pode sobrepor-se à regra de confirmar a informação junto de duas fontes independentes entre si. E de só revelar os factos realmente confirmados por mais do que uma fonte. Se alguém me acusa de me ter visto a roubar e a matar e um outro testemunho confirma ter-me visto a roubar, não pode o jornalista concluir que confirmou que eu tinha roubado e morto. O jornalismo que mistura factos comprovados com insinuações e manipulação, mata a credibilidade do jornalismo e transforma a suposta denúncia ética em mero ataque pessoal sem qualquer efeito substancial.

Não são estas as questões que indignaram Lagrifa Fernandes. Ele é sindonólogo (não encontro o substantivo no Grande Dicionário da Língua Portuguesa de Cândido de Figueiredo, mas creio não errar ao usá-lo). Conhece quase tudo quanto já foi dito, contradito e investigado acerca do Santo Sudário. É mesmo co-organizador de uma exposição fotográfica itinerante sobre a relíquia que põe à disposição de quem a desejar expor (autarquias, escolas e paróquias). Leu e não gostou do modo como foi redigida a notícia sobre o incêndio que a 12 de Abril destruiu a capela Guarini da Catedral de Turim.
Escreve de Ermesinde a protestar contra a preferência que o PÚBLICO terá dado "à opinião dos cépticos, preferindo elementos negativos" quanto à origem do lençol que muitos cristãos acreditam ter coberto o corpo de Jesus crucificado, sendo sua a cara que nele está imprensa de forma muito peculiar: não é visível a olho nu, tendo sido revelada através de negativo fotográfico. Lagrifa Fernandes refere que existem referências históricas ao Santo Sudário tão antigas como as que remontam aos anos 1203, 646 e 300. Que a datação pelo C14 nunca levou os especialistas a considerarem que a relíquia não poderia ser contemporânea de Jesus Cristo. E termina garantindo: "(...) asseguro que aquele histórico e magnífico lençol comprado por José de Arimateia pode mesmo ser o Santo Sudário (...)".
"A notícia foi escrita com base nos telexes das agências (como vem referido no texto) e nela se dá espaço às várias interpretações sobre a origem do sudário. O PÚBLICO não pretendeu defender nenhuma das teses existentes sobre a datação, ponto capital para saber se a relíquia é verdadeira ou falsa", escreve Torcato Sepúlveda, editor da sociedade, editoria em que a notícia foi publicada.

Sem possuir o vasto conhecimento de Lagrifa Fernandes sobre o assunto, ao editor o texto pareceu equilibrado. Embora reconhecendo que nele é dada demasiado ênfase à datação pelo C14 - sendo que este, argumenta o leitor, é um método aproximativo e não pode ser interpretado esquecendo as vicissitudes pelas quais o lençol terá passado - e que as agências terão induzido o autor da notícia em alguns erros de facto, não há no texto conclusão taxativa. Ao contrário, termina referindo: "Qualquer que seja a verdade(Š)".
Em todo o caso, fica agora mais claro que, do ponto de vista científico, "no Santo Sudário há um enigma, 85 problemas técnicos e um sensacional imbróglio científico." Para os leitores que pretendam continuar o debate, fica o número de telefone de Lagrifa Fernandes: (02) 971 30 25.


Texto de Jorge Wemans

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