Vizinhos infiltrados

A manchete da capa do Local/Lisboa de domingo, 13 de Abril, denunciava a quatro colunas: "Obras de Cardoso e Cunha lesam vizinhos há 13 anos". E o antetítulo explicitava: "Origem das infiltrações foi confirmada pelo LNEC, mas até agora o ex-comissário nada fez". Um texto de mais de 5000 caracteres e uma foto de grande dimensão descreviam os danos causados no andar inferior ao que é propriedade dos filhos de Cardoso e Cunha, danos motivados por obras feitas na habitação da família do ex-comissário. No texto dava-se conta de que Cardoso e Cunha se recusara "a comentar o assunto" ao PÚBLICO, argumentando tratar-se de "assunto sem interesses público". O leitor José Frazão, de Coimbra, não se queixou nem se indignou, mas transmitiu-me telefonicamente estar mais de acordo com a interpretação de Cardoso e Cunha do que com a do jornal: "Cá para mim, é um litígio do foro privado para o qual o PÚBLICO não é chamado!". O ex-comissário também não se queixou pelo facto do jornal ter considerado de interesse público um assunto por ele tido como privado.

Nem só de queixas vive a reflexão ética-deontológica, mas de toda a diferença de opinião sobre questões relevantes. E a questão aqui é esta: a "história" devia (merecia), ou não, ser publicada?
Pergunta básica que remete para a decisão primeira de toda a edição do trabalho jornalístico. Outras interrogações poderiam também ser pertinentes: qual o destaque a dar à notícia? Cardoso e Cunha será para sempre uma figura pública só por já o ter sido no passado (embora hoje nem no PSD ocupe cargos de direcção)?
Mas deixemos de lado essas perguntas para nos concentrarmos na essencial dicotomia: "publica-se" ou "não se publica".

Henry McNulty, ombudsman do "The Hartford Courant", escrevia (em 1994) que frequentemente estas escolhas não são passíveis de juízos do género "preto ou branco" e que sobre elas "podemos apenas formular juízos baseados em convicções pessoais e profissionais do que é Œcerto¹ ou Œerrado¹."
Duas vezes por ano, Henry McNulty propõe aos leitores do "The Hartford Courant" alguns "casos" - baseados em acontecimentos noticiosos - e sugere-lhes que votem a favor ou contra a sua publicação. Aos principais editores do jornal coloca a mesma pergunta. Depois publica os resultados das duas sondagens.
Esta experiência permitiu-lhe concluir: "Os leitores são mais cautelosos do que os editores. Dizem frequentemente que não querem ver os jornalistas no papel de censores ou a limitarem o direito do público ao acesso à informação. Mas nas respostas aos Œcasos¹ que lhes proponho os leitores mostram-se, de forma consistente e previsível, muito mais inclinados do que os editores a sonegar factos e a exigir contenção na reportagem. A respostas dos leitores são também mais divididas do que as dos editores. O seu voto divide-se habitualmente ao meio, ou em 60-40 por cento, para cada caso. Ao contrário, os editores têm uma opinião mais homogénea, do tipo 80-20 por cento e algumas vezes 100 por cento escolhe a mesma solução."
Para McNulty outra conclusão se impõe: "Os leitores dão um enorme valor à privacidade. Quando um acontecimento Œmexe¹ com o direito do público à informação versus o direito individual a ser deixado em paz, a maioria dos leitores fica do lado do indivíduo, mesmo quando tal implica não serem informados. Ao contrário, os editores tendem quase sempre a privilegiar o direito à informação." E por fim: "Os leitores não estão convencidos de que os parentes de pessoas famosas sejam alvo de notícias só por causa dessa relação. Se o irmão do presidente da Câmara foi preso por conduzir bêbado, os editores tendem a explicitar esse parentesco na notícia. Os leitores votam habitualmente em sentido contrário, argumentando que cada qual é responsável pelos seus próprios actos e que não é razoável referir o facto de o detido ser irmão de um personagem público."

Depois desta viagem pelas convicções de leitores e jornalistas norte-americanos, regressemos à capa do Local/Lisboa de domingo passado. Escreve o editor, Francisco Neves, em defesa do interesse genérico da publicação deste tipo de "histórias": "É o caso típico de uma história de interesse humano, género amplamente tratado no Local - onde "histórias de inquilinos" são o pão nosso de cada dia. Baseia-se num consenso da cultura jornalística que dá importância às fontes pessoais - por oposição às institucionais - e que normalmente tem exemplos nas peripécias do homem "comum" (se é que este existe). Têm o apelo de trazer às páginas do jornal, de forma directa, não intermediada por "representantes" ou "especialistas", casos humanos, quotidianos, e de satisfazer a curiosidade natural que as pessoas sentem umas pelas outras. Cobrem geralmente dramas pessoais, mas reconhecíveis por outros."
Em apoio deste jornalismo, Francisco Neves cita Richard Keeble no "The Newspaper handbook": "Na complexidade da vida moderna, o ângulo das histórias de interesse humano serve a explicação da evolução da História em termos compreensíveis. No centro de todas as histórias de interesse humano está a representação de emoções básicas: amor, desejo, ódio, conflito, tragédia, tristeza, piedade, alegria".
É certo. Sem esta abordagem jornalística da realidade os media não dariam conta do que realmente se vive na sociedade.

Mas, neste caso concreto, não se terá ultrapassado o respeito devido à vida privada de todo o cidadão? Responde o editor: "Neste caso, a história, típica da vida do cidadão "comum" - uma relação de vizinhança urbana degradada - tinha factores acrescidos de interesse: ocorre numa zona "boa" da cidade, não no cenário habitual de um parque habitacional degradado, e entre gente da classe média, sendo um dos protagonistas uma figura pública (...). Os limites normalmente aceites para a divulgação de aspectos da vida privada - situações de sofrimento pessoal ou de familiares, nomeadamente - não foram aqui violados, tratando-se basicamente de um caso de má convivência. O visado foi ouvido, mas não se quis pronunciar."
Não é certo, nem é errado. Mas é duvidoso. Sobretudo por que, ao contrário do que Francisco Neves escreve, o visado pronunciou-se: afirmou que o assunto era privado.
O PÚBLICO, para ilustrar a existência de muitas "relações de vizinhança urbana degradadas", contou um caso em que uma das partes envolvidas resistiu expressamente à sua divulgação. Essa é a essência do jornalismo: revelar aquilo que os visados querem manter oculto. Mas apenas e só quando tal revelação é do interesse público. O que não é, manifestamente, o caso desta história.
Sem querer impor a minha opinião, seria favorável à conclusão: "não publicável". Suspeito que a maior parte dos leitores a partilham. E que a maior parte dos jornalistas defendem a opinião contrária. Mas suspeitas e opiniões remetem para o campo das sensibilidades e não sustentam juízos categóricos.


Texto de Jorge Wemans

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