Íntimo, pessoal e inviolável

Vale a pena regressar ao trágico acidente de quinta-feira nas obras da Ponte Vasco da Gama, em Lisboa, para reflectir sobre a relação entre o público e o privado. Ou, mais correctamente, entre o público e o íntimo: onde se situa a fronteira entre o dever de informar e o respeito pela intimidade dos doentes exposta no diagnóstico médico? (É)

Em defesa deste direito à intimidade não poderiam Sindicato dos Jornalistas e Ordem dos Médicos (para não falar de outros profissionais que intervêm em questões relativas à saúde das pessoas) entender-se sobre códigos de comunicação a estabelecer?

Seis mortos, oito feridos, um dos quais em estado grave. Este será provavelmente o balanço final do acidente ocorrido nas obras da Ponte Vasco da Gama, em Lisboa, na última quinta-feira. Pouco passava do meio-dia e a espectacularidade do acontecimento pronunciava um final trágico. O que o tempo veio, infelizmente, confirmar. A comunicação social mobiliza-se para o local. As rádios põem no ar os primeiros relatos e diversas interpretações dos factos. As televisões abrem os telejornais com imagens do desastre. Na manhã seguinte o drama vem nas primeiras páginas de todos os jornais.

Um dos eixos da informação sobre o acidente desenvolve-se a propósito do estado de saúde dos oito feridos. Câmaras, microfones e repórteres invadem o Hospital de São José. Não se trata de satisfazer qualquer curiosidade mórbida, é o dever de informar sobre a situação em que se encontram as vítimas. Tudo o que ouvi, vi e li (embora não tenha visto, ouvido e lido tudo) pareceu-me conforme a esta necessidade de informar sem entrar em áreas que afectariam a intimidade das vítimas. Julguei ouvir o director do hospital, Sá Figueiredo, ir longe demais em pormenores sobre o estado clínico do engenheiro inglês Ralph Freeman. Mais tarde ouviu-o falar sobre este internado de modo conciso. Relata o PÚBLICO de sexta-feira: ""Ele encontra-se em coma profundo e está internado nos cuidados intensivos da neurocirurgia", disse Sá Figueiredo." Num outro local, o jornal adianta: "Fonte hospitalar indicou que esta vítima sofreu uma lesão no tronco cerebral, que, caso sobreviva, o deixará paraplégico." O português não é brilhante, mas não é a correcção gramatical que está em causa. O que me faz regressar ao trágico acidente de quinta-feira é a relação entre o público e o privado. Ou, mais correctamente, entre o público e o íntimo: onde se situa a fronteira entre o dever de informar e o respeito pela intimidade dos doentes exposta no diagnóstico médico?

Câmaras, microfones e repórteres invadindo hospitais é uma realidade já quotidiana. Mas, apesar da sua frequência, nem sempre médicos e outros profissionais da saúde mostram preparação para a enfrentar. É certo que para tal não foram treinados. Contudo, parecem esquecer com demasiada facilidade que o diagnóstico médico, mesmo que por eles feito, não lhes pertence. É "propriedade" do paciente. Só este - ou, em casos extremos, familiares seus - deve decidir quanto quer revelar publicamente sobre o seu estado de saúde. Vemos, ouvimos e lemos alguns profissionais de saúde discorrerem em público sobre a saúde de pacientes seus, como se tal fosse coisa sua. Não é. O estado de saúde de qualquer cidadão não é assunto da sua vida privada, é assunto da sua vida íntima, isto é, faz parte daquele núcleo individual que qualquer estado de direito reconhece como absolutamente inviolável.

Esta não é uma coluna do provedor dos doentes. Não nos alonguemos pois quanto à ética médica que, por desejo de protagonismo ou por ausência de à-vontade diante dos jornalistas, fica esquecida em declarações públicas de responsáveis hospitalares e outros.

Em dificuldade fica o repórter de televisão ou rádio que recebe, como resposta à pergunta sobre o estado de saúde do senhor x, uma arenga que viola claramente a intimidade do dito senhor. Se o episódio decorre em directo, torna-se quase impossível parar o "informador". Já o jornalista da imprensa está mais implicado naquilo que reproduz. E convém recordar que nenhuma ética profissional se pode eximir de responsabilidades com o argumento de se ter limitado a reproduzir algo que no quadro de outra profissão é eticamente condenável. Entre jornalistas e médicos devemos caminhar para códigos de comunicação perceptíveis pelos diversos públicos dos "media". Códigos que transmitam o essencial daquilo que é legítimo saber sobre o estado de saúde de figuras públicas ou de pessoas anónimas, vítimas de acidentes, e resguardem o inviolável direito de todo o cidadão à sua vida íntima.

Vale a pena reflectir sobre alguns exemplos recentes. Uns melhores, outros piores.

"A vítima apresentava ferimentos na cabeça, mas fonte policial disse ao PÚBLICO que "é prematuro" falar em crime, adiantando que o referido indivíduo era asmático, toxicodependente e (É)" - lia-se na última página da edição Lisboa de sexta-feira, em texto titulado "Toxicodependente aparece morto" e onde não faltava nome, idade e morada da vítima. Erro do princípio ao fim. Terá sido a condição de toxicodependente que vitimou o cidadão em causa? A polícia é fonte credível para produzir boletins de saúde? Que relevância têm a asma e a toxicodependência? Não bastava referir que a polícia se inclina para morte por doença, mais do que para a hipótese de homicídio?

No Verão passado, o Presidente da República, Jorge Sampaio, foi sujeito a intervenção cirúrgica. Por que assim o julgou mais conveniente, o Presidente decidiu-se por uma estratégia de comunicação aberta e bastante pormenorizada. Ficámos a saber muito mais sobre a saúde de Jorge Sampaio do que seria estritamente necessário. Mas o excesso de informação teve como contrapartida reduzir a ansiedade. O que não se conhece provoca maiores medos do que aquilo que se conhece (ou se julga conhecer). E, sobretudo, foi o próprio Presidente que caucionou a exposição da sua intimidade. Tudo certo.

Luísa Guterres, mulher do primeiro-ministro, foi recentemente sujeita a intervenção cirúrgica em Londres. Discreta, a comunicação sobre o assunto restringiu-se ao essencial. Cinco dias depois, o seu médico assistente, Leopoldo de Matos, precisou o tipo de patologia de que a sua paciente sofria, descreveu genericamente o objectivo e o tipo de intervenção cirúrgica a que tinha sido submetida e congratulou-se com a "excelente" recuperação de que Luísa Guterres dava sinais, ressalvando que "ainda é cedo para ter a certeza de que tudo vai correr no mesmo ritmo" ("A Capital" de 27 de Março de 1997). Ficámos esclarecidos e mais não precisamos de saber sobre um processo estritamente pessoal que, apesar de tudo, nos toca a todos.

Lisboa foi "tomada de assalto", no princípio de Dezembro último, pela realização da Conferência para a Segurança e Cooperação na Europa (CSCE). De repente as atenções viram-se para o embaixador russo que é evacuado de ambulância para o Hospital São Francisco Xavier. Diante de câmaras e microfones, o responsável do serviço hospitalar, A. Salles Luís, resiste várias vezes e nada revela sobre o paciente. Diz o que tem a dizer: "O seu estado não inspira cuidados. Presumo que amanhã terá alta." Ponto final. Contudo, o PÚBLICO de 3 de Dezembro legenda uma foto desta maneira: "Embaixador russo acometido de um ataque epiléptico: um dos piores momentos para um diplomata". E no texto nem faz referência ao que se passara dois dias antes! Porquê "ataque epiléptico"? Que temos nós com isso? Quem autorizou a divulgação de tal diagnóstico?

A lista de casos é interminável. O direito (e o dever) de informar caduca às portas da intimidade de cada cidadão. Temos todos o direito de saber qual o grau de gravidade de situações que afectam a saúde de pessoas públicas e de pessoas anónimas que foram vítimas de acidentes públicos. Temos direito a conhecer quais as expectativas de evolução dos seus casos. Creio que de muito pouco mais - ou mesmo de nada mais - temos direito a ser informados. E cabe aos jornalistas proteger a intimidade dos cidadãos da curiosidade alheia. Em defesa deste direito à intimidade não poderiam Sindicato dos Jornalistas e Ordem dos Médicos (para não falar de outros profissionais que intervêm em questões relativas à saúde das pessoas) entender-se sobre códigos de comunicação a estabelecer?

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Texto de Jorge Wemans