Manipulação anónima

Jorge Wemans

Geneva Overholser, "ombudsman" do "Washington Post",dedicou toda a sua coluna de 10 de Março último ao problema daidentificação das fontes. O tema foi-lhe sugerido por um artigo,publicado no jornal do domingo anterior, assinado por BobWoodward - lembram-se do caso Watergate? - sobre ascontroversas actividades do vice-presidente americano Al Gore emmatéria de recolha de fundos para o Partido Democrático e para ofinanciamento da campanha eleitoral de 96.

Escreve Geneva Overholser: "O texto de primeira página de BobWoodward no último domingo sobre o vice-presidente ("Gore erasolicitador-geral na campanha de 96") era poderoso. Durante toda asemana, teve eco em vários "media" de todo o país. Baseava-setambém, e de modo igualmente pesado, em fontes não identificadas.(...) Nenhuma fonte é identificada no arranque do texto na primeirapágina; nove referências anónimas surgem antes de podermos ler aprimeira identificação. "Fontes bem identificadas são absolutamentepreferíveis a fontes anónimas" diz o Livro de Estilo do "WashingtonPost". Quando todo o início de um artigo é dominado peloanonimato e as fontes identificadas se concentram no seu últimoterço, cabe perguntar se os editores desde jornal ainda acreditamnisso."

"Devemos sempre assumir que a informação fornecida por fontesconfidenciais é mais fraca do que a informação atribuível a pessoasreais", escreve a "ombudsman" do "Post", citando o livro de estiloda casa, para concluir: "Talvez já não acreditemos nisto."

A questão deve ser suficientemente séria para que GenevaOverholser não poupe críticas a um artigo assinado por um dos"monstros" do "Washington Post". É que o tema dá pelo nome decredibilidade. E para os jornais - ou melhor, para alguns jornais - acredibilidade é o assunto. Em 1985, recorda Overholser, numasondagem realizada pela American Society of Newspaper Editors, àpergunta sobre o uso de fontes anónimas no jornalismo deinvestigação, 49 por cento dos jornalistas aprovavam tal recurso,enquanto entre os leitores apenas 28 por cento eram dessa opinião.Os tempos terão mudado?

Em Portugal, o tema da identificação das fontes mereceu no curtoCódigo Deontológico do Jornalista um parágrafo inteiro: "Ojornalista deve usar como critério fundamental a identificação dasfontes. O jornalista não deve revelar, mesmo em juízo, as suasfontes confidenciais de informação, nem desrespeitar oscompromissos assumidos (É). As opiniões devem ser sempreatribuídas."

O Livro de Estilo do PÚBLICO consagra à questão váriosparágrafos. Para referir só dois deles: "Circunstâncias especiaisjustificam, por vezes, a omissão das fontes de informação. Noentanto, o direito ao sigilo deverá ser admitido apenas em últimorecurso e só quando não há outra forma de obter a informação ou asua confirmação. (É)

Só em casos muito excepcionais e ponderosos o PÚBLICOatribuirá uma informação a fonte não identificada. Então, adespistagem ou protecção de um informador deve ser cuidada, masnão enganosa e implica rigor e seriedade."

De princípios vamos assim. Mas, na prática, como estamos?

Escolha-se à sorte uma edição recente. Sai a edição de Lisboa deterça-feira, 18 de Março de 1997. São 133 textos a analisar. Aprimeira impressão é confortável: na primeira página nem uma fontenão identificada. Na última página a coisa apresenta-se um poucomenos bem: uma notícia baseada na agência Lusa refere por trêsvezes uma "fonte ligada ao processo" de recuperação de uma dezenade contentores com haxixe afundados ao largo da costa portuguesa.Não se percebe por que razão a Lusa não identifica uma fonte quenada afirma de problemático para a sua integridade, mas, enfim,aceita-se que o jornalista do PÚBLICO não tenha podido ir maislonge numa informação que lhe chegou por via a agência. Emboranão devesse sentir-se dispensado de o fazer... e, suspeito eu, nãofosse difícil ir mais longe e ser mais preciso.

Em toda a edição, o recurso a fontes não identificadas é usado 22vezes. Por 13 vezes são designadas como fontes de algumorganismo - seis das quais não são mais do que reprodução decitações insertas em telexes de agências (Lusa, Reuter, AFP) -, e emnove casos são utilizadas expressões que designam entidades ougrupos tais como "peritos monetários", "vários juristas", "um peritode balística", "alguns ambientalistas", etc... Em nenhum destescasos parece não existir outra razão do que a preguiça jornalísticapara identificar como é de regra as pessoas a quem o PÚBLICOsolicitou informações ou opiniões.

Mais complicada é a leitura de um texto que só por si representacerca de um quarto do total das fontes não identificadas encontradasno jornal desse dia. Trata-se do artigo sobre a marcação das eleiçõesbritânicas para 1 de Maio, assinado pelo correspondente emLondres, Hugo Estenssoro. Nele se citam a opinião dos "estrategosconservadores", as preocupações de "membros da cúpula dopartido", as tensões entre "membros da liderança trabalhista", a fédos "analistas em geral" e o facto de Major ter contrariado, ao nãomarcar para o Outono passado, os desejos de "muitos líderesconservadores". O tradicional nevoeiro londrino envolve totalmentea prosa e o leitor não sabe onde ancorar-se. Depois de ler mais deum quarto de página do PÚBLICO apenas viu atribuídasdeclarações a John Major.

João Carlos Silva, editor do internacional no PÚBLICO, justificaassim o artigo: "O texto em questão é daqueles onde se julgaessencial ir além do facto (a marcação das eleições) e fazer umaanálise (o que reservam os 44 dias até à ida às urnas). Mesmo sendoo PÚBLICO o jornal português que mais pormenorizadamenteacompanha a actualidade política internacional, acredito que nestescasos, por facilidade de leitura, são preferíveis estas citações vagasdo que a saturação do texto com cinco ou seis nomes semsignificado para a maioria dos leitores." A concisão do escrito e arapidez com que é transmitido ao leitor o clima em que se vai viver acampanha eleitoral ganha com a fórmula escolhida, mas também écerto que com textos destes nunca os leitores chegarão a conheceroutros actores da política interna britânica para além doprimeiro-ministro e do seu rival do "labour".

No que a esta questão das fontes diz respeito, há dois tipos dejornalismo em Portugal. Aquele que aparentemente faz furor aceitapublicar todo o tipo de "informações" fornecidas por fontesanónimas, evitando mesmo confirmar tais "informações" junto deterceiros, não vá perderem-se as manchetes a títulos gordos ou assensacionais aberturas de telejornais. É um jornalismo fácil demanipular pelos que desejam despejar ódios de estimação na praçapública, marcar a agenda política com novos "factos" ou fazerprogredir sem olhar a meios o seu projecto de poder. É umjornalismo que alegra hoje as suas vítimas de amanhã, como váriosresponsáveis socialistas já se deram contam. É um jornalismo quefaz furor, mas que não tem lugar no PÚBLICO.

As fontes de informação são sempre parte interessada. Também porisso devem ser sempre identificadas e a informação que fornecemsempre confirmada por outra fonte independente da primeira. Todossabemos que são bem limitados os casos em que a atribuição deuma informação a fonte identificada ameaça de facto a integridadedesta ou lhe causa prejuízos sérios. E estas são as únicas razões quemerecem que um jornalista do PÚBLICO mantenha aconfidencialidade de uma fonte. Tudo o mais releva da preguiça ouda participação activa num jogo em que ao jornalista cabe apenas serobservador atento e crítico.

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