A surpresa do entrevistado

O Ministério do Equipamento, do Planeamento e da Administração do Território e o secretário de Estado das Obras Públicas, Crisóstomo Teixeira, queixaram-se de que a entrevista dada por este último ao jornalista Carlos Cipriano do semanário "Gazeta das Caldas" foi publicada no PÚBLICO. Os leitores espantaram-se (ver A Coluna do Provedor do Leitor de 02/03/97): como é possível que tal tenha acontecido?

Carlos Cipriano era identificado por Crisóstomo Teixeira, segundo o próprio me explicou, como jornalista do PÚBLICO. Estranhou por isso que a entrevista tivesse sido solicitada para o "Gazeta das Caldas". Após a conversa tida com Carlos Cipriano, ficou certo de que alguns dos assuntos abordados seriam noticiados no PÚBLICO. Daí não ter manifestado qualquer surpresa quando leu a primeira notícia, relativa à modernização da Linha do Oeste. Mas, para o entrevistado, a entrevista fora dada ao "Gazeta das Caldas". Espantou-se de a ver em parte transcrita no PÚBLICO, tanto mais que achou despropositados os títulos de primeira página que a encabeçavam. Por seu turno, Carlos Cipriano entende que "esteve sempre implícito que parte da entrevista, ou melhor, que parte das informações obtidas na entrevista, poderiam sair no PÚBLICO".

À questão dos títulos dediquei a minha última coluna. Sobre as relações com as fontes entrevistadas, a ética jornalística é categórica: em caso algum são admissíveis implícitos quanto à utilização das informações recolhidas. Mesmo na simples recolha de declarações, assiste às fontes ouvidas pelo jornalista o direito de saberem em que quadro genérico tais declarações serão utilizadas. É certo que, no decorrer de uma investigação, declarações contraditórias de fontes diversas alteram a perspectiva do trabalho jornalístico e podem mesmo tornar centrais questões que inicialmente não se apresentavam como tal. Não é menos verdade que as próprias declarações constituem material informativo que, pela sua novidade, podem levar a ressituar afirmações e esclarecimentos anteriormente obtidos. O labor jornalístico é, por definição, um trabalho interactivo. Acontece publicarem-se notícias sobre práticas de favorecimento e peculato que partiram de investigação sobre atraso de obras. A atenção permanente à novidade e à relevância pública da informação que se obtém e a procura de confirmação de hipóteses interpretativas sugeridas pelas declarações que se recolhem são características do jornalismo que se preza de o ser. Nunca se sabe a que se irá chegar quando se parte para uma investigação.

Se estas são características do labor jornalístico, nenhuma delas permite que declarações de qualquer fonte sejam utilizadas de forma abusiva. A contradição por terceiros deve originar interpelação à fonte cujas declarações são contraditadas. Nem todas as declarações obtidas são publicáveis ou publicadas. O jornalista não é um carteiro (com todo o respeito pelos carteiros). Mas nenhuma declaração com relevância (critério operado pelo jornalista, mas critério objectivo) para o assunto tratado deve ser omitida. Numa entrevista formal publicada sob a forma de pergunta resposta, não há lugar para ambiguidades ou implícitos sobre onde tal material será publicado. Diz o Código Deontológico Norueguês: "(...) as premissas de entrevistas e relações similares com fontes e contactos devem ser claramente expressas." Não foi o caso da entrevista a Crisóstomo Teixeira.

Se se confirmar a tendência para que o jornalista deixe de estar ligado apenas a um órgão de comunicação social e passe a trabalhar para um grupo multimédia - editando a informação recolhida em vários suportes: televisão, rádio, jornal, internet -, como manter claramente expressas estas premissas na relação com fontes e contactos? O futuro obrigará a que se clarifique com as fontes a eventual publicação das suas declarações (ou parte delas) em diversos meios. E ao jornalista caberá identificar-se como pertencendo a um grupo multimédia. Mas público e entrevistado não deixarão de se surpreender ao ver uma mesma entrevista reduzida a três minutos de televisão, cinco minutos de rádio, uma página de jornal e reproduzida na íntegra (no limite, sob a forma de imagem) na internet. Confusão? Talvez perturbação, mas certamente maior exposição do profissionalismo do jornalista e maior transparência para o público. Com acesso a todas estas formas de edição, o público (e o entrevistado) poderá julgar do rigor das escolhas feitas pelo jornalista na apresentação da entrevista na linguagem própria de cada suporte.

A evolução do jornalismo ditará novas relações com as fontes. E, tal como noutros países em que as práticas já são estas, também em Portugal se encontrarão formas de assegurar que tais relações possam, em novos quadros profissionais, manter-se como relações de confiança. Ainda que sempre sujeitas a tensões e conflitos.

Outra interrogação formulada pelos leitores diz respeito à rede de correspondentes locais do PÚBLICO. Escreve Francisco Neves, editor do Local-Lisboa: "Na constituição dessa rede preferiram-se candidatos já ligados a órgãos de informação, uma vez que têm a vantagem de já estar dentro do circuito noticioso. (...) Os correspondentes que, por assim dizer, trabalham "em casa" são excepção, já que o seu acesso à notícia é muito mais lento." Mas o próprio Francisco Neves reconhece: "A situação envolve alguns condicionalismos. Embora se trate de colaboradores que não fazem parte dos quadros do jornal (o que os isenta, nomeadamente, da regra da exclusividade), o PÚBLICO exige-lhes que não trabalhem para concorrentes directos (outros diários matutinos)."

Luís Costa, editor do Local-Porto, defende uma política mais restritiva: "Sempre que possível deve-se evitar contratação de correspondentes que sejam simultaneamente redactores de jornais locais. (...) Todavia, e perante a inevitabilidade de contratar correspondentes nessa dupla situação (...), é imperioso esclarecer, logo à partida, as condições desse "contrato"."

A maior proximidade e atenção aos acontecimentos locais e a impossibilidade de remunerar em exclusivo jornalistas sediados em áreas geográficas que só de forma intermitente são objecto de notícia no PÚBLICO favorecem a contratação de correspondentes locais não exclusivos. E, através destes, os leitores do PÚBLICO têm informação local obtida e tratada por jornalistas que conhecem as situações e os protagonistas locais. Vantagem dos leitores.

Mas, como refere Luís Costa: "Trata-se de uma situação que, pela sua natureza, encerra um evidente potencial de promiscuidade na relação com as fontes e que, paralelamente, coloca o jornalista perante um conflito de interesses difícil de resolver: na venda da informação - porque é disso que prosaicamente se trata -, qual dos jornais deve privilegiar? O que tem mais leitores e maior circulação? O que tem mais prestígio? O que paga melhor?" Francisco Neves corrobora: "Há, por vezes, conflitos de interesse. Caso o correspondente obtenha uma cacha forte, a quem a dará primeiro? Nos casos mais frequentes, dá a história simultaneamente ao PÚBLICO e ao seu jornal. O que já não é mau."

Escreve Carlos Cipriano, director-adjunto do semanário "Gazeta das Caldas" e correspondente local do PÚBLICO: "Em nenhum momento escondi ou escondo a minha dupla função. As minhas fontes habituais sabem que trabalho para os dois órgãos. (...) Sempre que os temas têm relevância nacional e podem interessar ao PÚBLICO, pergunto às minhas fontes se o autorizam. (...) Nunca, em seis anos, publiquei uma mesma peça no PÚBLICO e na "Gazeta das Caldas". O enfoque dado a uma notícia quando é feita para um órgão nacional ou para um órgão regional é totalmente diferente."

Gestão difícil, conflito de interesses, potencial promiscuidade. Um pouco de tudo isto pode surgir a partir da dupla pertença de alguns correspondentes locais. Valerá a pena correr tantos riscos? As vantagens que os leitores obtêm de tais situações permitem concluir que sim. E que o mesmo se aplica a correspondentes internacionais. Perante riscos identificados e aceites, só há uma resposta: máximo rigor.

Rigor do correspondente na relação com as fontes, explicitando caso a caso qual o destino das informações obtidas. Rigor do mesmo na relação com os responsáveis editoriais, a quem dará conhecimento das peças que sobre o mesmo assunto publica em outro órgão de comunicação social. Rigor do editor solicitando aos correspondentes naquela situação o cumprimento das duas exigências anteriores.


Texto de Jorge Wemans