Colisão sensacional

Escreve Francisco P. Soares: "(...) Acho que "Colisão no Governo", a toda a largura e a vermelho, na primeira página, a propósito do que depois se lê, é, de facto, e no mínimo, sensacionalismo!" O leitor - que é de Lisboa e esclarece que a sua "reacção não tem nada a ver com simpatias ou antipatias em relação ao Governo ou a qualquer dos seus membros" - conclui desta forma a sua análise da manchete da edição de 23/02/97 e da relação desta com o texto da autoria de Carlos Cipriano publicado na pág. 38. Carlos Cipriano é correspondente do PÚBLICO nas Caldas da Rainha e director adjunto do semanário "Gazeta das Caldas".

Na sua carta de terça-feira 25 que me endereçou, Francisco P. Soares refere ainda o seu desagrado perante o tom da nota da redacção inserta junto à publicação do comunicado do Ministério do Equipamento, do Planeamento e da Administração do Território (MEPAT) (última página da edição de 24/02/97) e sublinha o seu espanto sobre outro ponto: "(...) Então uma entrevista à "Gazeta das Caldas" é usada no PÚBLICO?!" Duas questões incómodas para outros leitores, que não hesitaram em solicitar a intervenção do seu provedor. Questões que merecem reflexão própria. Limito-me hoje a referi-las na sua relação mais directa com este caso de crítica a "títulos sensacionalistas". Fica prometido que a elas voltarei em próximo texto.

A manchete alvo da crítica é esta: antetítulo: "Secretário de Estado das Obras Públicas em divergência com os planos do Executivo"; título: "Colisão no Governo"; pós-título: "Novo aeroporto de Lisboa é desnecessário." No interior do jornal, o texto da pág. 38 mereceu o título: "Nuvens sobre o aeroporto"; e o antetítulo: "Secretário de Estado das Obras Públicas duvida da necessidade de uma nova infra-estrutura aeroportuária para Lisboa."

Na edição seguinte, o PÚBLICO edita um comunicado do MEPAT em que se classifica a manchete de "sensacionalista" e onde são fornecidos diversos "esclarecimentos", entre os quais o de que "as considerações sobre o futuro aeroporto de Lisboa" tecidas pelo secretário de Estado "a título pessoal (...) são, aliás, coincidentes com a posição oficial do ministério".

Na quinta-feira 27/02/97, o PÚBLICO inseria, sem qualquer nota da redacção, carta do secretário de Estado, Crisóstomo Teixeira, referindo a sua surpresa por uma entrevista por si dada à "Gazeta das Caldas" ter sido publicada no PÚBLICO e lamentando a "discordância entre o conteúdo do texto e títulos sensacionalistas". Sustenta Crisóstomo Teixeira: "(...) Das minhas considerações à "Gazeta das Caldas" não se podem deduzir afirmações contrárias à necessidade de procedimentos que viabilizem um novo aeroporto na região de Lisboa entre 2007 e 2010, nem discordância relativamente à política do Governo ou em relação às declarações públicas do senhor ministro do Equipamento, do Planeamento e da Administração do Território."

O "caso" envolve, como se vê, diversas peripécias e suscita várias questões. Trato da acusação de "sensacionalista". Não sem deixar de referir que na edição de quinta-feira, dia 20/02/97, na primeira página do Local/Lisboa, Carlos Cipriano assinava um texto sobre a Linha do Oeste intitulado "Melhorias até Torres Vedras" que reproduzia afirmações de Crisóstomo Teixeira obtidas na referida conversa entre o jornalista e o secretário de Estado. Tal publicação não foi objecto de qualquer crítica por parte do referido governante. A surpresa de Crisóstomo Teixeira ao ver declarações suas feitas ao "Gazeta das Caldas" editadas no PÚBLICO só nasce após o título da manchete de dia 23. Surpresa que, para o secretário de Estado, é apenas mais um argumento contra o jornal, para reforçar, ainda que de forma lateral, a acusação de "sensacionalismo". Se assim é para aquele membro do Governo, não o deve ser para o PÚBLICO. Se a identificação do jornalista como tal é de regra, na condução de uma entrevista é impensável deixar qualquer ambiguidade sobre o órgão de comunicação social em que ela será publicada. Mas a este assunto já prometi dedicar outra coluna, em que darei voz ao referido jornalista.

Ao contrário de outros códigos deontológicos de jornalistas na Europa, o código do jornalista português, embora refira a obrigação de "interpretar honestamente os factos", não refere de modo explícito a relação entre título e texto. Vários outros códigos deontológicos europeus, baseados na experiência deste tipo de conflitos, sublinham o dever de "adequação dos títulos ao conteúdo dos textos" e de os "títulos serem devidamente suportados pelo conteúdo do texto a que se referem".

No Livro de Estilo do PÚBLICO lê-se: "Os títulos e os antetítulos dos textos informativos devem ser sempre inspirados no "lead", o que implica o rigor deste. (...) Títulos imaginativos e vigorosos são uma característica do PÚBLICO. Mas isso não deve confundir-se com a facilidade dos trocadilhos ou das "private jokes" cifradas. Entre um título descritivo e sóbrio, mas rigoroso, e um título que se reduz a um mero jogo de palavras, o primeiro deve ser a opção correcta."

O título da manchete da edição de dia 23, bem como a polémica que suscitou, teve o condão de tornar fortemente visível e conhecido que a construção de um novo aeroporto na região de Lisboa nos próximos 15 anos não é uma necessidade indiscutível para todos os que estudam estas questões há anos. Ficam os leitores avisados de que alguma distância crítica devem manter face a anúncios bombásticos de que o Governo (este ou qualquer outro que lhe suceda) decidiu avançar para a edificação de novo aeroporto. Será uma decisão legítima, mas com alta probabilidade de não ser consensual. Como habitualmente este tipo de decisões governamentais é anunciado como se de benesses se tratassem, têm os leitores, a partir de agora, consciência do seu carácter controverso.

Nada disto justifica, porém, o título da manchete em causa. As declarações de Crisóstomo Teixeira não permitem inferir a existência de uma qualquer colisão no Governo. O secretário de Estado não terá total razão quando pretende que as suas declarações não são discordantes "relativamente à política do Governo", pois na referida entrevista diz (e nunca a fidelidade da transcrição de tais afirmações é posta em causa): "Acho que é capaz de não ser necessário nenhum novo aeroporto." A sua convicção - que decorre de há vários anos estar envolvido neste tipo de estudos - é clara. Mas o Governo tem prolongado a orientação anterior e deu todos os passos para que, se tal se revelar necessário, um novo aeroporto surja antes de 2010. E o ministro já referiu tal construção como certa.

Não existe, é certo, qualquer decisão (ou pré-decisão) definitiva sobre o assunto. E por isso se revela excessivo e despropositado o título "Colisão no Governo". Não é verdade. Pelas declarações públicas infere-se que existirão divergências sobre a antecipação das conclusões dos estudos. Convenhamos que estamos ainda muito longe de uma colisão. É que, neste caso, ainda nem os carros (os aviões, mais propriamente) saíram da fábrica e já o PÚBLICO se apressa a referir o seu choque inevitável!

P.S. - Sem esquecer as diversas manifestações privadas de felicitações (ao PÚBLICO e a mim próprio) recebidas ao longo desta semana a propósito da criação do cargo de provedor do leitor, não posso deixar de agradecer as simpáticas boas-vindas (e os elogios pessoais) que Mário Mesquita, provedor do leitor do "Diário de Notícias", me enviou publicamente a partir da sua página da última segunda-feira. A presença que, há um mês, assegura no "DN" é uma referência.


Texto de Jorge Wemans