Leitores
e Eleitores em Democracia Por
JOAQUIM FURTADO
Domingo,
21 de Março de 2004 O MAIS RECENTE, IMPORTANTE,
EPISÓDIO do relacionamento entre o poder político
e o jornalismo, decorreu em Espanha, tendo como cenário
mais de 200 mortos, quase milhar e meio de feridos e um acto
eleitoral.
Consumada a tragédia e contados os votos, jornais influentes
acusam um
presidente de governo de, pessoalmente, lhes mentir, a propósito
da autoria do mais mortífero atentado terrorista realizado
no país.
A intenção seria manipular a vontade popular
na hora do voto, mas o plano não resistiu o tempo suficiente
para vingar, porque a liberdade de informação
prevaleceu sobre a tentativa do seu controlo, transformando
em castigo o que o autor pretendia que fosse prémio:
José Maria Aznar e o PP perderam umas eleições
cujas sondagens lhes davam a vitória.
Deixemos de lado as análises estritamente políticas
dos acontecimentos de Espanha e observemos a comunicação
social. Vítima ingénua de tentativa de instrumentalização
no relacionamento entre a política e os media ?
Nas sociedades democráticas, o poder político
e o contra-poder jornalístico - se se aceitar a designação
- são dois mundos ligados, interdependentes que, embora
tendo objectivos diferentes, influenciam e se influenciam mas
que, por vezes, se confundem, confundindo os cidadãos.
OS CHOQUES SÃO ILUSTRADOS, FREQUENTEMENTE, com episódios
não circunscritos partidária nem geograficamente.
Há dias, a Associação dos Jornalistas alemães
acusou o chanceler Gerard Schroeder de boicotar jornais e jornalistas
críticos da acção do seu governo, tal como
recentemente a revista "New Yorker" garantia que a
Casa Branca apenas fornece aos jornalistas o noticiário
que prepara para eles, recusando responder a quaisquer pedidos
de outras informações.
Afinal, a versão actualizada de uma prática que
John Keane descrevia há mais de uma década (1),
referindo-se às conferências de imprensa na Casa
Branca: "Certos repórteres são acreditados;
as perguntas são feitas; as perguntas que permitiriam
desenvolver os assuntos são rejeitadas; os temas frouxos
têm prioridade; e desde o tempo de Truman que as declarações
introdutórias, cuidadosamente preparadas, ajudam a marcar
a agenda para os repórteres que aguardam".
Analisando as formas de interferência do Estado nos media
das democracias ocidentais, o professor da Universidade de Westminster
identifica, "cinco tipos de censura política",
sendo um deles a mentira (onde inclui o exemplo citado ).
"MATANZA DE ETA EN MADRID" era a manchete da edição
especial do jornal espanhol "El País", no fim
da manhã do próprio dia do massacre de Atocha.
Outros jornais informaram de forma similar, citando o ministro
do Interior, mantendo-se a autoria da ETA quando já emergia
a possibilidade de se tratar de um atentado da Al-Qaeda, pista
que, no dia seguinte, prevaleceria em toda a imprensa.
O director do "El Periódico", Antonio Franco,
viria a revelar, já depois das eleições,
que fora o próprio José Maria Aznar a pressioná-lo
(tal como aconteceu com outros jornais) com a tese da autoria
da ETA, através de dois telefonemas. No segundo, o presidente
do governo incluíu um pedido de desculpas por, no primeiro,
não ter aludido à pista da Al-Qaeda, mas insistiu:
"Ha sido ETA, no tengas la menor duda".
O mesmo tipo de contacto foi estabelecido com Jesús
Ceberio, o director do El País (e, segundo foi noticiado,
com directores de outros órgãos de informação).
Após um primeiro telefonema para Ceberio, às 13
horas de dia 11, em que "afirma rotundamente que ETA está
detrás del atentado", mais tarde, às 20.45
horas, Aznar "de nuevo en conversación con EL PAÍS,
ratifica que el atentado es obra de ETA".(2)
A REVELAÇÃO DA EXISTÊNCIA DESTAS CONVERSAS
fora feita no domingo, dia 14, nas páginas do jornal.
Singularmente, na coluna da defensora del lector (equivalente
ao provedor do leitor). Numa crónica em que descreve,
vista do interior da redacção, a forma como o
jornal acompanhou os acontecimentos e os cobriu nas primeiras
horas, Malén Aznárez explica, o que os leitores
ainda não sabiam: "El titular de portada a cinco
columnas es contundente: 'Matanza de ETA en Madrid'. En qué
se basava EL PAÍS para afirmar tal cosa si todavía
el ministro del interior no lo había confirmado ? Mui
sencillo. Al margen de distintas fuentes de Interior que así
lo habían asegurado, el presidente del Gobierno, José
María Aznar, había llamado al director del periódico,
Jesús Ceberio para confirmar esta autoria".
E, respondendo a um leitor que critica o editorial de 6ª
feira, 12, ( onde já se põe em dúvida a
autoria da ETA ), dizendo que é preciso acreditar nas
instituições, a defensora do leitor, conclui a
crónica: "Este periódico creyó al
presidente del Gobierno en sus dos afirmaciones al director.
Pero la confianza tiene un límite, la realidad ".
Malén Aznárez remete assim o comportamento do
presidente do governo para um dos vários tipos, interligados,
de censura política, definidos por Jonh Keane: "Mentir.
O hábito desagradável de mentir em política
é uma característica dos regimes democráticos
(e outros). A convicção dos políticos de
que metade da política é imaginação
e a outra é a arte de levar as pessoas a acreditarem
em fantasias, sejam quais forem 'os factos', é extravagante;
a velha máxima de que só poderemos entender os
políticos se lhes olharmos para os pés e não
para a boca continua a ser verdadeira".
E QUANTO À CONDUTA DOS JORNALISTAS? Foi irrepreensível
naquela situação, profissionalmente difícil
?
Como revela Malén Aznaréz, a manchete que compromete
o jornal na afirmação peremptória que atribui
à ETA a autoria do massacre, tem uma fonte. Chama-se
José María Aznar. Não foi citada. Nem foi
invocada nenhuma fonte confidencial, nem referida nenhuma confidencialidade
requerida ou aceite. Aznar não quis? Porquê, se
o seu ministério estava a insistir na mesma tese? Citou
provas que convenceram o jornal ?
O jornal assumiu uma informação como se estivesse
certo da sua veracidade. E não estava. Acreditou na fonte,
tal como outros.
Revelá-la depois, como aconteceu, poderá encerrar
a questão do lado do político. E do lado do jornal
? agora que o problema das fontes leva títulos tão
importantes como o "New York Times" a definir novas
regras ?
Quanto à política, os eleitores tiraram as suas
conclusões. Quanto ao jornalismo, serão os leitores
a tirar. E os jornalistas.
1) "A Democracia e os Media", 1991, edição
"Temas e Debates"
2) "filme" das declarações institucionais,
publicado na edição do "El País"
de 19 de Março
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