Isenção
e Manifestação Por
JOAQUIM FURTADO
Domingo,
14 de Março de 2004 Isenção
é uma palavra menos presente em manuais de redacção
ou textos teóricos do que outras, de certa forma equivalentes.
Significando, nos dicionários de linguagem corrente,
desprendimento moral e independência de carácter,
no léxico do leitor de jornais, isento é, afinal,
o jornalista que trata os factos e os relata com aquele desprendimento
e aquela independência a que podemos chamar distanciação,
imparcialidade e equidade. Objectividade, portanto?
Muito discutido e questionado nos últimos anos, designadamente,
pelo chamado "jornalismo cívico" (como um entrave
a que o jornalista se afaste da neutralidade tradicional e se
empenhe em favorecer causas de cidadania), objectividade é
um conceito há muito associado ao jornalismo norte-americano
e nem por todos adoptado.
É conhecida a opinião de Hubert Beuve-Méry,
fundador do "Le Monde": "a objectividade não
existe; a honestidade, sim". É também neste
sentido que estabelece o Livro de Estilo do PÚBLICO (à
semelhança, aliás, do que faz o código
deontológico dos jornalistas, onde a palavra não
surge). Considerando-se a objectividade como algo inatingível,
o jornalista deve, no entanto, persegui-la usando de "honestidade
intelectual" no relato exacto dos factos e das opiniões.
A credibilidade do jornal passa pela observação
desta prática que, no fundo, condensa os vários
conceitos citados, num único valor a que o leitor chama,
muitas vezes, isenção.
Exactamente, a palavra destacada por Rodrigo Lourenço,
de Lisboa, para titular um e-mail em que exprime "desagrado
e desacordo" relativamente à cobertura da manifestação
contra a despenalização do aborto, publicada no
dia 4, sob o título "E se eu o matasse agora mesmo?":
"entendo que o tratamento daquela notícia não
é isento, é tendencioso e acaba por instrumentalizar
a notícia como argumento em favor dos que defendem a
despenalização do aborto".
Em concreto, como fundamenta o leitor as suas observações?
Por um lado, acha que aquele título, bem como o de outra
notícia publicada na mesma página ("Você
mata crianças!") são "auto-explicativos";
por outro, contesta o ângulo de abordagem escolhido: "numa
notícia sobre manifestação pró-vida,
acompanha-se a perspectiva de... dois contra-manifestantes!"
Além de Rodrigo Lourenço, um outro leitor, também
de Lisboa, escreveu ao provedor sobre esta notícia, assinada
pela jornalista Maria José Oliveira. Apresentando-se
como participante na manifestação, Pedro Viana
diz que "faz pena ver que, numa publicação
que se pensa imparcial, os artigos sejam manifestação
da opinião pessoal da jornalista". Acha que o título
da notícia "tenta ridicularizar" a iniciativa
e critica também o enfoque escolhido: "O artigo
deveria descrever uma manifestação de quinhentas
pessoas pela vida, mas descreve a de duas pessoas que reclamavam
o contrário (...)".
Confrontada com estas opiniões, a repórter admite
que a manifestação "representa, tal como
qualquer outro protesto, um acontecimento sensível no
contexto de uma cobertura jornalística" . Recorda,
a propósito, uma polémica desencadeada pela reportagem
da manifestação anti-globalização,
realizada no final do Fórum Social Europeu, e comenta
a ênfase que certos distúrbios, surgidos "neste
tipo de protestos", merecem na comunicação
social: "São ocasionais, são desencadeados
por uma ou duas pessoas, mas são estas as iniciativas
que têm mais projecção nos media, cujos
critérios de escolha das notícias assentam precisamente
no nível de interesse jornalístico da situação".
A resposta serve para os dois leitores, considerando Maria José
Oliveira que "a indignação manifestada"
por Pedro Viana "carece de argumentos, uma vez que não
basta escrever que a jornalista 'deveria descrever uma manifestação'".
Para quem não leu, estamos a falar de que notícia?
Na verdade, trata-se de uma reportagem em que a jornalista começa
por descrever a presença, no percurso da manifestação,
de dois anti-manifestantes, (um deles interpelado, a certa altura,
por uma manifestante, com a frase que fará o título
da peça). A jornalista descreve depois, aspectos da manifestação,
contextualizando-a e, por fim, refere-se aos comícios
que aquela, e outra concentração de sinal contrário,
realizaram junto ao Parlamento.
Há parcialidade, falta de isenção, "tendenciosismo",
no relato dos factos? É patente a opinião da jornalista,
relativamente à matéria da reportagem? Para o
provedor, as respostas são negativas.
No entanto, as observações dos leitores são
pertinentes: o título da peça (sem dúvida,
jornalisticamente forte), a "entrada", bem como toda
a parte inicial da notícia (parcela considerável
do texto integral), são espaços ocupados a relatar
a presença dos dois contra-manifestantes. Deste modo
e a avaliar pelo próprio texto, a real importância
daquela presença sai assim valorizada de forma desproporcionada.
Para explicar a sua opção, a repórter
refere apenas que fez aquilo que os media fazem, nestes casos,
ao destacarem episódios "ocasionais" a que
atribuem "interesse jornalístico".
Convidada a pronunciar-se, a editora da secção,
Ana Sá Lopes, também cita o caso da cobertura
da manifestação anti-globalização
realizada no final do Fórum Social Europeu, (em que "fomos
'acusados' de retirar o enfoque ao verdadeiro objectivo"
da manifestação) e afirma que teve dúvidas
no momento em que editava o texto de Maria José Oliveira:
"Deveríamos 'abrir' por aí, não deveríamos?
Era um episódio anómalo na manifestação,
e nós, por 'vocação' damos relevo a episódios
anómalos".
Rejeitando qualquer intuito de fazer campanha contra os manifestantes
"que não é regra da casa", Ana Sá
Lopes não hesita em afirmar que "percebe a sensibilidade"
deles, nem em reconhecer que podia ter optado por uma alternativa:
"destacar o episódio anómalo num segundo
texto, dando primazia às opiniões dos promotores
da manifestação num primeiro".
Na verdade, o provedor acredita que essa teria sido a opção
correcta. De outra forma, só se, pelas suas próprias
dimensões e repercussões, o episódio "ocasional"
ou "anómalo" dos dois contra-manifestantes,
se sobrepusesse, em real relevância noticiosa, ao evento
principal, que era a manifestação. Já tem
acontecido. Mas não desta vez. O que legitima as observações
dos leitores.
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