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Inocente até que...
Por JOAQUIM FURTADO
Domingo, 7 de Março de 2004

EM PORTUGAL, durante o último ano, discutiu-se quase tanto a Justiça como a Comunicação Social. Temas e conceitos como prisão preventiva, escutas telefónicas, segredo de justiça e presunção de inocência, bem como fontes noticiosas, fugas de informação e sensacionalismo jornalístico, ocuparam não só, longas horas de antena em rádios e televisões, como milhões de páginas de imprensa e de processos judiciais.

Independentemente do lugar que os tempos que vivemos virão a ocupar no futuro, é certo que algo mudou no país com a eclosão do "caso Casa Pia".

Não avaliando aqui a actuação da Justiça, os méritos jornalísticos da revelação do escândalo, sobrelevam, sem os apagar, os erros entretanto cometidos que, contudo, não podem ser atribuídos, por igual, a uma Comunicação Social que é desigual. Por outro lado, uma vez trazido para a opinião pública, o caso arrastou consigo a mais profunda discussão, já havida entre nós, sobre o estado da Justiça. E mais ainda: a denúncia dos abusos, acabou por revelar aos portugueses, um "outro" país, onde grassa, em dimensão surpreendente, uma miséria moral desconhecida.

Abusos sexuais tentados ou perpetrados em crianças, passaram a ser diariamente noticiados, denunciando familiares, amigos, professores, padres, um pouco por todo o país.

É UMA realidade com que os jornalistas têm que saber lidar, no relacionamento com as fontes, na divulgação dos factos, na referência noticiosa aos envolvidos, sejam vítimas ou suspeitos.

Os acontecimentos recentes mostraram como nem sempre foi devidamente observado o respeito pelos direitos em presença, desde a insuficiente protecção da identidade de crianças - o que qualquer código ético condena severa e inequivocamente - até à exposição pública de nomes que nem sequer constam de processos judiciais.

Seja ou não devido a uma nova sensibilidade a estas questões, trazida pelo debate público, um leitor envia ao provedor, o e-mail "inocente até que...", onde estranha os termos de uma notícia relativa a um suspeito de tentativa de abuso sexual de um menor: " não identificava o acusado, mas dizia que é um ex-GNR, apontava a idade, referia que era viúvo e indicava a freguesia onde morava ". O leitor, que pede para não ser identificado, ficou chocado " com a falta de cuidado. Se se vier a provar que a acusação era falsa, a tal lama está lançada sobre a honra de um cidadão ".

EMBORA situando a notícia em Trancoso, pelos dados que cita, o leitor estará referir-se a um caso ocorrido em Moncorvo, que motivou, em 14 de Janeiro, uma pequena notícia, não assinada, no Local Porto do PÚBLICO.

Convidada a pronunciar-se, a editora Filomena Fontes não esclarece a autoria ou origem da notícia, mas explica que " os dados revelados sobre o suspeito resultam de um comunicado oficial emitido na altura pelo Comando Nacional da GNR, tendo sido apenas referida a localidade de origem do suspeito, necessária para localizar a notícia".

O que está em causa é o seguinte: o leitor considera que, ao revelar o lugar onde o detido reside ( e onde nasceu, acrescente-se), a sua idade, a viuvez, e a condição de "ex-GNR" ( e como se reformou ), o jornal não protege suficientemente a identidade de alguém cuja culpa não está apurada.

Note-se que a notícia se refere, no título, à "detenção" de um "suspeito de abuso sexual de menor" mas no texto explica que ficou detido, " acusado dos crimes de ?violação de domicílio e desobediência às autoridades? " ( por queixa de telefonemas para um menor e por resistência à ordem de detenção).

Note-se ainda que, apesar de a notícia se referir a um acusado destes crimes e a um "suspeito de abuso sexual de menor", o leitor usa a expressão "acusado de assédio sexual a um menor" )...

O PROBLEMA colocado inscreve-se, por um lado, no domínio do uso rigoroso de conceitos ( um suspeito não é um acusado, podendo vir a sê-lo ou não ) e, por outro, na esfera do direito ao bom nome e à presunção de inocência.

Uma consulta a alguns dos códigos éticos e normas de conduta que vigoram em diversos países europeus, permite concluir por uma relativa imprecisão sobre normas a observar pelos jornalistas no tratamento destes casos.

Daniel Cornu (*) refere que a menção de nomes, no âmbito de notícias judiciais é "uma questão em aberto" e que a dificuldade em encontrar regras comuns a diversos países confere à questão especial interesse "em termos de ética", uma vez que deixa uma parte da decisão " à apreciação pessoal".

Daniel Cornu surpreende-se que poucos códigos deontológicos " geralmente tão expeditos na procura de convergências com o direito, se preocupem em lembrar o princípio da presunção de inocência". Destaca a "notável excepção" do Código alemão, donde, entre outros preceitos, respiga: " um suspeito não deve ser considerado culpado antes do julgamento do tribunal".

O código alemão refere, concretamente, que a publicação de nomes e fotografias de suspeitos de crimes deve ser cuidadosamente pesada, considerando o seu interesse público.

A titulo de curiosidade: os códigos dinamarquês e finlandês estabelecem no mesmo sentido e, pelo contrário, segundo um artigo recente de Eunice Goes, correspondente em Londres do semanário "Expresso", no Reino Unido " não há uma lei que garanta o direito à privacidade" registando-se casos em que "a imprensa identifica suspeitos" que "mais tarde os tribunais determinam que estão inocentes", mas que o poder judicial pode impôr a proibição da identificação de suspeitos, o que faz, em geral, a pedido dos próprios.

DE QUE forma estes elementos nos servem para analisar o caso em apreço, proposto por um leitor do Porto?

É preciso não perder de vista que todas as normas citadas se referem à publicação de nomes e fotos de suspeitos. Sendo certo que a notícia do PÚBLICO não incluía por isso dizer-se que não identificava o suspeito a que se referia ?

Filomena Fontes responde que " a verdade é que as indicações que são dadas só poderão identificar a pessoa naquela pequena localidade onde, mesmo antes da notícia, ela já estava identificada. Como é normal num meio pequeno".

A resposta não pondera que a revelação da identidade ganha maior relevância, exactamente, no "meio pequeno" onde se vive, sendo que publicar no jornal significa confirmar "oficialmente" o que se julgava saber.

Além de relativizar um princípio, de resto consignado no Livro de Estilo do PÚBLICO: " (...) nos casos de detenção de suspeitos, a sua identidade nunca deve ser revelada ou minimamente insinuada ( por exemplo com a divulgação do apelido ou de outros dados aproximativos) " sem investigação conclusiva do jornal ou averiguações policiais que conduzam a uma acusação formal.

Algo, afinal, considerado na notícia que o mesmo Local Porto publicou no dia seguinte e em que a jornalista Ana Fragoso, actualizando a informação, reduziu ao essencial, os elementos de identificação do suspeito.

(*) - "Jornalismo e verdade, para uma ética da informação", edição Instituto Piaget.