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Que Modelos para o Jornalista?
Por JOAQUIM FIDALGO
Domingo, 23 de Setembro de 2001

Os cenários de guerra continuam a dominar o trabalho informativo e a suscitar polémicas de opinião. Mantêm-se no pico da actualidade situações que constituem desafios para a profissão difícil que é a de jornalista. Como sugere um concurso de admissões feito na RTP e cujos resultados merecem um olhar...

O espectro da guerra, qualquer que ela seja, ocupa a paisagem mediática. As atenções dos leitores estão agora mais voltadas para próximos desenvolvimentos - e a comunicação social tenta alimentar essa vontade de antecipar os episódios vindouros, ao mesmo tempo que, elaborando cenários possíveis, suscita novas curiosidades -, sem, no entanto, deixar de olhar para o que se passou nos EUA. Ali, ainda há muita notícia, muita reportagem, muita pergunta com resposta incompleta.

Curiosamente, as duas questões aqui levantadas na semana passada a propósito da cobertura dos atentados terroristas nos EUA - a polémica sobre o uso de certas imagens mais "fortes" e a complementaridade entre imprensa e televisão - foram igualmente objecto de debate em diversas latitudes, seja em colunas de provedores americanos e europeus, seja em textos de informação ou opinião vocacionados para a análise do trabalho mediático.

Sobre o carácter complementar da informação da televisão (em cima do momento) e do jornal (no momento seguinte), muitas vozes a destacaram. "Podemos não nos aperceber sempre das forças dos diferentes 'media'. Mas estes são os dias em que os testamos", dizia a professora Monica Moses, citada no "site" do Poynter Institut. Especificando: "A imprensa congela um momento no tempo; acrescenta-lhe um conjunto de palavras bem escolhidas; define-o, informativamente e emocionalmente. (...) A televisão faz o 'play-by-play; os jornais distanciam-se e sintetizam". Ou, como comentava o especialista espanhol Román Gubern (num trabalho de "La Vanguardia" sob o título "A capacidade interpretativa da imprensa impõe-se à saturação de imagens do drama americano"): "Assim como os 'media' audiovisuais oferecem o impacto, a imprensa escrita está a proporcionar a análise e a reflexão; e neste sentido complementam-se".

Embora os leitores não tenham dirigido comentários ao Provedor sobre a matéria, parece claro que o PÚBLICO vem tentando preencher extensamente esta função de interpretação, reflexão e contextualização dos acontecimentos, de par com a antecipação do que pode estar para vir. E tanto na leitura do passado como na antevisão do futuro, é utilíssimo para os leitores manter aberto e plural o espaço de opiniões, dando ecos de toda a sua diversidade.

Já vimos como o assunto fulcral (o terrorismo e o modo de o combater) é complexo e suscita leituras ou posicionamentos muito distintos. Cabe a um jornal com o carácter do PÚBLICO ser também fórum desse debate nas áreas de opinião, ao mesmo tempo que o enriquece com peças jornalísticas que nos permitam "ver" mais longe e mais fundo.

Sobre as imagens, alguns questionaram se houve um alegado "pacto de auto-censura" entre as televisões americanas para poupar os espectadores a imagens de sangue e choque, ou se a escassez de tais imagens se deveu à impossibilidade de chegar suficientemente perto do cenário da tragédia.

Na primeira hipótese, será que essa auto-censura se basearia em preocupações éticas, ligadas ao respeito pela dignidade das pessoas envolvidas e pela sensibilidade dos receptores, ou teriam também outros propósitos subliminares? Sugeria um filósofo espanhol citado por "La Vanguardia": "Os Estados Unidos querem guerras limpas; durante a guerra do Golfo também não mostraram os cadáveres dos soldados iraquianos espalhados pela areia". E um psiquiatra juntava: "Não se quis tornar ainda mais patente a debilidade e as limitações dos Estados Unidos perante este tipo de ataques; daí que não se tenha querido mostrar imagens de cidadãos estado-unidenses que sangram, agonizam, morrem".

Em contrapartida, um jornalista da TV catalã defendia que não houve censura, pois acredita que "para tornar patente a magnitude de uma tragédia não é necessário ferir a sensibilidade do púbico adulto ou infantil". Partilho desta opinião. Mesmo a aqui citada (e, creio, dispensável) "suicide photo" não foi, apesar de tudo, explorada, morbidamente repetida, desmesuradamente ampliada ou destacada, nos 'media' que entre nós decidiram mostrá-la. O que se regista.

Seja como for, há desafios éticos iniludíveis quando o jornalista é colocado perante tragédias e, devendo reportar os acontecimentos de maneira viva, apelativa, não mecânica, nem por isso pode esquecer as pessoas concretas que estão em causa - seja no terreno, seja em casa (recebendo sons, imagens, textos).

A este propósito, recordo um episódio que pode ter passado despercebido.

Numa entrevista ao "Diário de Notícias" de 10/9, a jornalista da RTP Márcia Rodrigues dava conta do processo de selecção (a que superintendeu) de novos jornalistas para o projecto informativo da RTP2. E fazia esta revelação: dos 500 candidatos que concorreram, não conseguiu seleccionar mais de 32 (quando pretendia 40), sendo que dezenas deles, depois de darem boa resposta a requisitos técnicos e culturais, reprovaram na última fase, "sobretudo na parte de aferição deontológica". Desabafava Márcia Rodrigues na entrevista: "Pessoas com tendências neonazis. Pessoas que acham que ser assessor de imprensa de um político e fazer publicidade é compatível com o jornalismo. Pessoas que, perante um crime com crianças, disseram que entrevistavam [para a câmara] os menores e as famílias. É assustador".

Assustador e sintomático. Pode haver deficiências de base na formação dos candidatos a jornalistas - alguns destes, embora não todos, tinham cursos de Comunicação Social, onde a ética e a deontologia são matérias em princípio aprofundadas -, mas ressalta, sobretudo, a interiorização de um "modelo" peculiar de quem trabalha em informação e que advirá dos exemplos que colhemos à nossa volta.

O modelo prevalecente, o que "está a dar", parece ser o do protagonismo individual e do impacto emocional das notícias, sem grandes questionamentos prévios. "Então não vê que os canais que fazem informação assim é que têm mais sucesso de audiência?... E se as pessoas consentem em ser filmadas, mesmo em situação dramática, a que propósito vamos nós recusar?... E se o chefe me mandasse fazer um trabalho desses, eu negava-me e ia para a rua ou ficava 'a marcar passo'?" - eis algumas das justificações que Márcia Rodrigues me disse ter ouvido da boca de candidatos a um lugar na televisão pública.

Comentários? Os dados estão aí... Algo não bate certo quando vemos aspirantes a jornalistas tão pouco sensibilizados para a responsabilidade social desta profissão ou para as implicações éticas do seu exercício, numa interacção que deve escrupuloso respeito a todas as pessoas e cujo papel é dar expressão, na sociedade, ao seu direito fundamental a uma informação livre e verdadeira, mas também cuidadosa, séria e digna.

EM SÍNTESE

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