Coisas Pequenas...
Por JOAQUIM FIDALGO
Domingo, 29 de Julho de
2001 Para além dos grandes temas, das manchetes, dos "dossiers"
ambiciosos, das histórias de primeira página, um jornal faz-se também de muitas
pequeninas coisas. E se algo (tanto...) aprendeu o Provedor nestes quase dois anos que
leva de função, foi que os leitores estão bem mais atentos a essas pequenas coisas do
que se pensaria: uma palavra incorrecta, um horário errado, uma troca de nomes, uma
informação enganadora sobre um qualquer serviço, uma disparidade de critérios entre
secções, uma frase "despreocupada" no meio de um textinho breve... Atentos,
exigentes, críticos leitores - como convém, e como os jornalistas cá da casa sempre
dizem que os querem.
Não é que se atribua importância excessiva às "coisinhas": muitas vezes são
os próprios autores do reparo que o relativizam, sabendo que se trata de um pormenor, uma
distracção, um lapso involuntário. Mas não gostam. Sobretudo, não aceitam falhas
dessas num jornal como o PÚBLICO, que cultiva uma imagem de rigor, de exigência
profissional, de controlo de qualidade em todos os espaços, desde a manchete mais nobre
à informaçãozinha mais corriqueira. Criar expectativas elevadas tem esse ónus: é-se
lido à lupa e, compreensivelmente, menos desculpado do que outros. Como há tempos
desabafava um leitor (que cito de memória), depois de criticar um erro menor: "Bem
sei que isto, em si, não é relevante, mas põe-me logo mal disposto para o resto da
leitura... Prezo tanto o MEU jornal que não lhe aceito descuidos."
Pois foi no meio de um textinho simples e descontraído, como são as prosas do suplemento
estival "Meia Praia" - adequadamente, aliás, dado o produto em causa, pois para
matéria pesada já nos chegam as realidades reportadas nas demais páginas do jornal... -
que o leitor António Carvalho encontrou uma expressão, a seu ver, inadmissível.
Recordando tempos idos, falava o jornalista (no caso, Fernando Correia de Oliveira -
F.C.O, na assinatura abreviada que usou) da imprescindível "licença militar"
para que um homem pudesse deslocar-se ao estrangeiro, quando lhe saiu uma referência
global à "corrupta e inepta Guarda Fiscal". Comenta António Carvalho:
"Com que direito ou com que provas F.C.O. utiliza os termos "corrupto" e
"inepto" para com uma instituição do Estado recentemente extinta, que existiu
durante larguíssimas dezenas de anos? (...) Seria possível eu escrever no jornal que
F.C.O. é corrupto ou inepto? Não, pois o director do jornal não mo permitiria sem
apresentar provas". E conclui o leitor: "Em todas as profissões há maus
elementos. Na Guarda Fiscal ou no jornalismo. Mas isso não dá a ninguém o direito de
usar o poder que lhe é facultado de insultar em público toda uma classe, milhares de
homens e mulheres".
Há aqui, de facto, um problema de generalização que esqueceu regras básicas do texto
jornalístico, qualquer que ele seja. O jornalista, Fernando Correia de Oliveira, é, de
resto, o primeiro a reconhecê-lo e a assumir a falta: "Penso que o leitor tem alguma
razão, quando tomo a parte pelo todo". Sobre a Guarda Fiscal, lembra que a decisão
de a extinguir teve também a ver com o facto de "a sua imagem junto da opinião
pública [estar] demasiado degradada (por escândalos sucessivos de corrupção, como
foram os casos, já em democracia, de redes de contrabando de electrodomésticos ou de
tabaco)". Foi a partir desse adquirido que fez a dita referência, embora sem o
propósito de insultar todos e cada um dos membros da corporação.
Que esta imagem global se foi impondo, e não por acaso, é verdade. Mas não é menos
verdade que, apresentado o quadro como foi naquele texto, todo o antigo guarda fiscal
levou pela mesma medida, fosse inepto ou competente, fosse corrupto ou exemplarmente
íntegro (que de uns e de outros houve, com certeza). Qualquer generalização se arrisca
a ser abusiva, e portanto injusta, sendo que, neste caso, ajuda a perpetuar um
"carimbo" negativo - mesmo com algum fundamento em realidades conhecidas - num
corpo policial particular.
O jornalista sugere, entretanto, que se está perante um texto opinativo, como são
praticamente todos os do suplemento "Meia Praia". Daí a decisão, correcta
segundo as regras do PÚBLICO (o suplemento também "é" PÚBLICO...), de que
todos sejam assinados. Mas nem isso resolve o problema, pois uma opinião num jornal deve
ser, como aponta o leitor, minimamente fundamentada, para não se tornar afirmação
gratuita, ou quiçá insultuosa. E quanto a insultos, ainda que não intencionais, mesmo
os pequenos são grandes se nos tocam a pele...
Tem, pois, razão o leitor - e regista-se o "mea culpa" do jornalista.
Já não é caso para "mea culpa" do jornal o tratamento gráfico dado, esta
semana, ao incêndio num lar de idosos em Viana do Castelo, de que resultaram três mortos
e muitos feridos. As primeiras páginas de quase todos os jornais do dia seguinte
apresentavam fotografias que, salvo melhor opinião, constituíam uma chocante exposição
pública de pessoas fragilizadas, e que nem por terem sido vítimas de uma tragédia
perderam o direito à privacidade - e à dignidade. De um ponto de vista informativo, que
justificação podia haver para nos mostrarem, perfeitamente identificáveis, pessoas
quase nuas, indefesas, doentes, de fraldas, com a dor estampada na face, enquanto eram
retiradas pelas janelas?...
Permitam-me, por isso, que enalteça a opção do PÚBLICO de escolher para a sua primeira
página (edição Porto) uma fotografia que, retratando eloquentemente (embora de modo
indirecto, criativo, sensível) toda a dimensão da tragédia, não precisou de chocar os
leitores com imagens cruas da intimidade de qualquer dos idosos apanhados no desastre.
Preservou a sua dignidade, respeitou-os a eles e aos seus familiares, respeitou-nos a
todos. Para isso contribuiu o jornalista, que teve preocupações éticas enquanto esteve
no terreno, e contribuíram os editores ou directores a quem coube escolher aquela foto -
quando podiam ter escolhido outra. E a "outra", a avaliar pela maioria dos
jornais, é o que está a dar... Mas há quem não vá por aí.
Um pequeno cuidado, um pequeno gesto, uma breve pausa para pensar... e da soma dos
"pormenores" se vão também fazendo as coisas grandes.
P.S. O Provedor estará de férias durante o mês de Agosto, pelo que esta coluna semanal
só regressa em Setembro. Entretanto, como o jornal continua a sair todos os dias, os
leitores podem ir enviando as suas críticas, comentários ou questões, que a todos se
procurará dar resposta no retomar do trabalho. Boas férias!
EM SÍNTESE
Rigor - Uma crítica generalizadora arrisca-se sempre a ser injusta para alguns
Dignidade - A que propósito pôr a nu, no jornal, as vítimas indefesas de uma tragédia?
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