Assuntos Melindrosos
Por JOAQUIM FIDALGO
Domingo, 15 de Julho de
2001 O modo como os "media" tratam matérias mais sensíveis
(agressões passionais, suicídios) pode provocar reacções de mimetismo. É um problema
que reclama especiais cuidados. Se há, e haverá, casos em que as notícias não podem
deixar de ser dadas, o mais importante está nos termos em que se dão - e como se
apresentam.
Lidar com certo tipo de notícias, sobretudo em jornais onde a preocupação ética e o
sentido de responsabilidade social vão além de meros chavões propagandísticos, pode
ser um grande problema. Há matérias eventualmente noticiáveis cujo manuseio envolve
enorme melindre, seja porque é duvidoso o seu interesse público, seja porque podem
interferir com a privacidade de cidadãos, seja porque não acautelam a dignidade das
pessoas, seja... porque podem provocar efeitos negativos.
É esta última circunstância que gostaria de abordar hoje: como proceder quando se
admite, ou receia, que certa notícia possa ter consequências nefastas, designadamente
provocando reacções de imitação?
O assunto tem sido, por estes dias, objecto de múltiplos debates no interior da
Redacção do PÚBLICO (onde se mantém o salutar hábito de criticar o próprio jornal
sem papas na língua, por vezes com divergências e polémicas, mas decerto com vontade de
fazer sempre melhor). O motivo próximo veio das recentes agressões com ácido
sulfúrico, registadas no Centro do país, tendo-se levantado a dúvida sobre se as
notícias da primeira agressão terão, de algum modo, contribuído para que outras se
sucedessem em curto espaço de tempo, numa espécie de mimetismo. E que fazer, agora,
sobre o assunto? Ficar por aqui? Esquecer? Aprofundar o tema?...
A isto somou-se o simpósio organizado há dias pela Sociedade Portuguesa de Suicidologia,
cujo tema era "Suicídio e Comunicação Social" - tendo-se falado bastante,
como seria expectável, da influência que certas abordagens informativas podem ter no
comportamento dos leitores/ espectadores, em especial os mais jovens ou os mais
fragilizados. Por dramática coincidência, faleceu esta semana, presumivelmente por
suicídio, uma pessoa muito conhecida do mundo do espectáculo (Cândida Branca Flor) -
sendo curioso notar como o assunto foi tão diversamente tratado nos nossos
"media", desde a pequena notícia discreta em página interior até à manchete
de letras garrafais na primeira página...
À liça vieram, entretanto, opiniões importantes de psiquiatras e psicólogos, que
merecem a nossa atenção. Não é que haja obrigatoriamente "conflito de
interesses" (como sugeriu Carlos Brás Saraiva) entre o que os jornais
"gostam" de fazer com estes casos trágicos e o que os psiquiatras consideram
mais recomendável para os prevenir: há jornais e jornais, as generalizações
arriscam-se a ser redutoras, injustas e pouco produtivas. Mas que pode ser utilíssimo,
como defendeu o mesmo médico (de par com Daniel Sampaio), um diálogo sistemático e uma
entreajuda destas duas comunidades profissionais com um grande impacto social, disso não
há dúvidas.
Devem os jornais noticiar estes casos - sejam as agressões com ácido, sejam os
suicídios? Mais importante ainda: a noticiar (como parece incontornável quando estão em
causa figuras públicas ou quando os acontecimentos contêm ingredientes de ineditismo ou
de surpresa que suscitam natural interesse dos leitores), devem fazê-lo em que termos?
Finalmente: se, como parece plausível, algumas destas notícias se arriscam a criar
indesejáveis fenómenos de imitação, que fazer, no trabalho jornalístico, para os
contrariar?
O director do PÚBLICO, José Manuel Fernandes, afirma ser "muito difícil
estabelecer uma regra rígida" nestas questões. Cada situação, entende, deve ser
analisada à luz de três critérios básicos: (1) a "projecção pública" que
o caso tem em si, ou que acaba por adquirir, (2) a sua "relevância" como
"sintoma social" merecedor de alguma reflexão, e (3) aquilo que ele nos permite
dizer sem ultrapassar "limites de bom gosto", "sem ferir
sensibilidades" e "sem explorar o lado mais mórbido" que tais casos
frequentemente comportam.
À luz destes critérios, o director do PÚBLICO admite que se pode chegar a três
opções: ou pura e simplesmente não se dá a notícia, ou se faz um texto factual
"com grande discrição", ou se aposta num "trabalho de enquadramento mais
vasto". Seja como for, não só aquilo que se diz mas o modo como se apresenta (como
se titula, como e onde se pagina, como se ilustra - enfim, como se edita) requer sempre
"muita atenção".
Coisas semelhantes a estas foram ditas no simpósio organizado pela Sociedade Portuguesa
de Suicidologia, de acordo com os relatos saídos na imprensa. Por exemplo, a sugestão de
que a comunicação social não se fique por "uma versão sensacionalista da
história", mas que recorde também os serviços de apoio e prevenção; que sejam
publicados só os dados relevantes, e de modo discreto; que se tenha em devida conta o
sofrimento dos familiares envolvidos; que não se abordem os suicídios de um jeito que
quase os torne aventuras emocionantes ou os suicidas quase heróis; que haja uma
colaboração mais próximo, nestes casos problemáticos, entre os especialistas de saúde
mental e os jornalistas.
O problema maior, como alertou Daniel Sampaio (que reconhece haver hoje "um maior
cuidado" no tratamento noticioso dos suicídios), não está tanto em dar ou não dar
as notícias, mas em "como" as dar.
Que há um potencial "efeito imitativo", há. Mas não se resolve silenciando
todas as notícias sobre todas estas matérias. É impossível e dificilmente defensável.
Só que esse efeito pode ser minimizado se o tratamento jornalístico respeitar
proporções adequadas - e, sobretudo, em jornais mais dados à informação aprofundada
do que ao "fait-divers", se conduzir a uma abordagem de aspectos que passam pela
prevenção e por uma consciência social mais clara do que está em causa, bem como pelo
modo como pessoas mais fragilizadas ou seus familiares devem lidar com certos sinais. Pelo
contrário, pode ser maximizado se a partir dele se fizerem manchetes sensacionalistas, se
se remexer nos detalhes mórbidos da história, se se expuser desnecessariamente quem
está a viver uma dor, se se "glorificar" quem, no fundo, não teve força ou
ajuda para resistir. Infelizmente, é muito isto que faz alguma da comunicação social
que temos.
Salvo melhor opinião, o PÚBLICO tem seguido com razoável cuidado (mesmo com dúvidas e
muito debate...) a doutrina de que aqui se dá conta. É esse também o entendimento dos
leitores? Seria interessante saber. Se me permitem, acrescentava até um desafio concreto:
imaginem-se editores do jornal. Vendo cair em cima da secretária uma informação sobre
um rapaz que algures desfigurou a namorada com ácido sulfúrico, que é que faziam? Davam
a notícia ou não? Em que termos? E como procediam se, na semana seguinte, lhes surgisse
um caso idêntico, em tudo parecendo uma imitação provocada pela notícia do
primeiro?...
EM SÍNTESE
Precaução - O modo como se noticia um suicídio pode maximizar ou minimizar o seu
"efeito imitativo"
Colaboração - Jornalistas e técnicos de saúde mental devem trabalhar em conjunto sobre
estes temas
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