"Jornalismo de
Precisão"
Por JOAQUIM FIDALGO
Domingo, 8 de Julho de
2001 Aqueles que chamam a atenção para a necessidade de o jornalismo se
exercer mais como uma "profissão" do que como um "ofício" (ou uma
"arte") apontam, afinal, para um caminho de exigência, de atenção, de estudo,
que ajuda a lidar melhor com algumas das fragilidades actuais do trabalho informativo.
Entre elas a manipulação
Philip Meyer, um conhecido jornalista e professor universitário dos Estados Unidos, não
é certamente leitor do PÚBLICO, mas quis o acaso que, nesta última semana, tenha vindo
"dar uma ajuda" ao provedor no tema analisado no passado domingo, e com
continuação prevista para hoje: o da manipulação no jornalismo. Ou, mais
genericamente, o da multifacetada trama de relações e influências entre quem trabalha
na informação, por um lado, e quem é fonte ou motivo dessa informação, por outro.
Meyer batalha há muitos anos por aquilo a que chama "jornalismo de precisão",
pondo a tónica na necessidade de os jornalistas se prepararem bem para a complexidade do
mundo de hoje e fazerem aplicadamente o seu "trabalho de casa" quando abordam a
matéria noticiosa. Situa-os, assim, mais do lado de quem se dedica às ciências sociais
do que do lado dos seguidores das artes de bem escrever (a "jornalismo de
precisão" contrapõe "jornalismo literário", de fortes tradições em
certos países), com as inerentes exigências profissionais e, digamos, científicas.
"Que o jornalismo deixe de ser um ofício para se converter numa profissão",
sugeria, há dias (cfr. "El País" de 2/7/01).
Isto liga-se com a questão das pressões, directas ou indirectas, a que a comunicação
social está, e sempre estará, sujeita. Uma postura profissional de atenção, de
conhecimento, de investigação, permite que os jornalistas superem duas das suas
características mais tradicionais, de acordo com Philip Meyer: a "passividade"
e a "inocência". Mesmo sendo posturas que se baseiem numa boa intenção (ser
"passivo" e "inocente" corresponderia a distanciar-se dos
acontecimentos, a não se imiscuir, a reportar com objectividade, a relatar com
isenção...), na prática acabam frequentemente por corresponder a uma demissão de
funções, a um "lavar de mãos", deixando que as forças que se movem para
condicionar a agenda dos "media" e os próprios conteúdos informativos se
movimentem à vontade, levando a água ao seu moinho. A passividade pode, assim,
transformar o jornalista em "pé de microfone", e a inocência mais não será
do que uma enorme ingenuidade que faz dele um "idiota útil". Usado sem saber
que o está a ser, ou com que fim.
Tomemos uma outra citação, agora da autoria da editora Ellen Bevier, do jornal "San
Diego Union-Tribune" (EUA), e retomada pela respectiva provedora, Gina Lubrano (sim,
que este assunto da manipulação não é só nosso...): "Cobrimos muitos eventos nos
quais os participantes tentam manipular os 'media' informativos. Mesmo a mais rotineira
conferência de imprensa se insere nessa categoria. Uma das nossas tarefas é tornar claro
o contexto de tais eventos, para que os leitores possam julgar por eles próprios o valor
da informação que está a ser tornada pública".
Ora aqui está como se pode dar a informação de modo rigoroso e aprofundado, e
simultaneamente com "precisão": transmitindo o que outrem fornece para ser
transmitido, mas deixando claro ao leitor (mediante trabalho próprio de pesquisa, de
reflexão, de estudo) o enquadramento mais global em que o evento deve ser lido, os seus
antecedentes, a sua relação com outros, enfim, as chaves para uma adequada
interpretação dos factos.
Não é isto que, em boa parte dos casos, sucede entre nós. Uma personalidade pública
pode marcar calmamente uma conferência de imprensa para as 20h10, mesmo sem que dela se
espere revelação palpitante, e logo tem a comunicação social em peso a fazer-lhe a
cobertura, com as televisões em directo. E porquê? Só porque é Fulano, ou... porque
toda a gente lá vai e ninguém arrisca deixar o "exclusivo" para o concorrente
do lado. Mesmo que seja sobre a mais banal das banalidades...
Isto é, na prática, manipulação. Isto é, na prática, impor à comunicação social
uma determinada agenda, contando com a sua cumplicidade. Dá a ideia que o "outro
lado" estudou muito melhor a lição e sabe bem como funciona o sistema mediático,
quais as suas fragilidades, quais as suas rotinas, quais os seus vícios, quais as suas
preferências, tirando naturalmente o maior partido de tudo isso - e oferecendo aos
"media", de mão beijada, o que os "media" aparentemente querem.
Como aqui se dizia há uma semana, os protagonistas públicos (políticos e outros) estão
no seu papel, ao fazer estas tentativas de condicionamento da informação publicada. Mas
os jornalistas têm a obrigação de levar isso em conta e de fazer o seu trabalho
específico.
Há vários caminhos para tal.
Um é o que referia a editora de San Diego, ao focar a necessidade de o trabalho
informativo expor o seu contexto, ou até os seus bastidores, para se perceber até que
ponto os dados são relevantes ou fiáveis. Disso tivemos por cá um exemplo positivo, na
semana finda, quando diversos jornalistas levaram até ao fim o esclarecimento da
trapalhada em que se envolveu o primeiro-ministro, António Guterres, sobre as demissões
de Pina Moura e Manuela Arcanjo. Guterres, afinal, mentiu - e pediu até aos ex-ministros
que o deixassem mentir por eles. Tudo foi negado em sucessivos momentos, mas a verdade
acabou por vir ao de cima. E foi útil para se perceber como funciona este jogo...
Outro caminho passa não só por um maior investimento dos jornais em agenda própria,
como numa maior preparação dos jornalistas para lidarem com o modo como hoje são
produzidos e distribuídos os fluxos noticiosos de que se alimentam.
Ter agenda própria é mais difícil do que ir só atrás dos eventos
"marcados", implica maior investimento em recursos humanos e materiais, toma
mais tempo, pede mais esforço - e requer uma maior imersão dos jornalistas no tecido
social, para que conheçam melhor o seu pulsar profundo e não andem sempre pelas mesmas
notícias, sobre as mesmas instituições, com as mesmas pessoas.
Lidar com as fontes de informação de modo autónomo e não promíscuo obriga a conhecer
bem as forças em presença, estudar os interesses envolvidos, recusar negociações que
firam princípios éticos, não confundir relações pessoais com relações
profissionais, nunca perder afinal de vista que - lá diz o estatuto Editorial do PÚBLICO
- o jornal "é responsável apenas perante os leitores". Apenas.
Ser manipulado não é uma fatalidade. Também não se caia no exagero de dizer que só é
manipulado quem quer. É problema com que toda a comunicação social tem que estar
habituada a viver, e que às vezes a ultrapassa. Mas perceber melhor quais os meandros da
manipulação, e expô-los sempre que seja o caso, ajudará a minorá-la: vai dando aos
leitores os elementos necessários para que ajuízem eles próprios.
EM SÍNTESE
Escolha - Investir mais em agenda própria é depender menos das impostas por outros
Atenção - A complexidade das relações entre jornalistas e fontes não está na idade
da inocência
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