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Jogos e Manipulações
Por JOAQUIM FIDALGO
Domingo, 1 de Julho de 2001

Não é novidade afirmar que a comunicação social se tornou um dos palcos de eleição da luta política - ou, mais genericamente, um campo privilegiado de tudo o que é confronto ou disputa envolvendo algum tipo de poder(es), seja na política, na economia, na cultura, no desporto, na justiça...

Veja-se a polémica da semana sobre o processo judicial em torno da Universidade Moderna (UM). É exemplo elucidativo de como as partes tentam usar os meios de comunicação, de modo ora directo, ora sub-reptício, para influenciar desfechos futuros. Ou - como também foi o caso - para denunciar publicamente este próprio tipo de procedimentos, defendendo-se de suspeitas ou insinuações.

Percebe-se porquê. Não é que os jornais ou as televisões se substituam aos tribunais, que a seu tempo serão chamados a julgar. Mas aceita-se que certo tipo de notícias ajuda a criar, junto da opinião pública (e junto de quem terá a responsabilidade de tomar decisões no foro próprio), um clima mais ou menos favorável a esta ou àquela parte. Se tais estratégias acabam, efectivamente, por condicionar os julgamentos finais, é pergunta a que será sempre difícil dar resposta. Não custa, porém, admitir que, pelo menos em dadas situações, alguma influência acabam por ter - quanto mais não seja, no juízo pessoal que fica dentro de cada um de nós.

O caso da UM, no que tem a ver com o aproveitamento do "tabuleiro" da comunicação social para ganhar vantagem noutros "tabuleiros", lembra outra polémica, ainda recente, que suscitou um comentário ao leitor José Carlos Silva. Passou-se quando a professora universitária (e actual Provedora do "Diário de Notícias") Estrela Serrano defendeu tese de mestrado na Universidade Nova de Lisboa. O trabalho académico - que mereceu elogios de um júri altamente conceituado - consistiu numa investigação sobre as estratégias comunicativas dos presidentes da República em Portugal, entre 1976 e 2000, e, mais especificamente, no trabalho realizado por cinco órgãos de informação aquando de uma presidência aberta de Mário Soares em 1993 (sendo primeiro-ministro, à época, Cavaco Silva).

Com base no que foi noticado a propósito da tese de Estrela Serrano (que, recorde-se, trabalhou como assessora do presidente Soares), gerou-se alguma controvérsia, centrada na questão de saber até que ponto os "media", conforme titulou o PÚBLICO, "ajudaram a minar poder de Cavaco". Segundo o relato jornalístico, a autora do trabalho terá constatado que aquela presidência aberta ocorreu num momento de tensão entre Soares e Cavaco (com o primeiro desejoso de "desgastar" politicamente o segundo) e que acabou por verificar-se alguma "coincidência" entre os interesses do Presidente e "os interesses e as ideologias do jornalismo que privilegiam a polémica e a conflitualidade".

Embora o PÚBLICO não tenha sido um dos órgãos de informação estudados, o leitor José Carlos Silva diz-se "perplexo" com a situação: "Todos nós conhecemos Soares e aquilo de que ele é capaz para (...) atingir os seus objectivos políticos. A minha surpresa não resulta, portanto, deste personagem. Fico surpreendido, isso sim, com o facto de um jornal como o PÚBLICO se ter deixado manipular, permitindo que os seus fiéis leitores tivessem sido enganados sabe-se lá quantas vezes e por quanto tempo!".

Ora aqui é que parece que o leitor leva um pouco longe demais as suas conclusões...

Não conheço o profundo trabalho desenvolvido por Estrela Serrano - e por isso, além de não ser este o lugar, não cairia na tentação em que alguns caíram de fazer comentários apressados. Por outro lado, o que aqui interessa não é o caso em si, mas o problema mais vasto de saber até que ponto os órgãos de informação "se deixam manipular" e, logo, "enganam os leitores". O que é um problema bem melindroso.

Há, neste contexto, duas evidências a assinalar: uma, que as mais variadas instituições, designadamente as políticas, tentam "marcar a agenda" dos jornais, insistindo para que cubram certos acontecimentos, fornecendo informações frequentemente interessadas e em momentos estratégicos, privilegiando ora esta ora aquela publicação, etc. ; outro, que a comunicação social tem uma particular apetência por tudo o que sejam situações real ou potencialmente conflituais, pois suscita títulos "fortes", cria polémica, ajuda a alimentar fluxos noticiosos, capta mais (supostamente...) a atenção dos leitores.

Será, contudo, precipitado deduzir que, quanto ao primeiro aspecto, os interessados conseguem sempre os seus intentos e marcam, de facto, as agendas a bel-prazer. Para falar com franqueza, também é claro, quanto ao segundo aspecto, que frequentemente os jornais não resistem a explorar para além do aceitável certos conflitos artificiais ou de todo irrelevantes, alimentando alegremente estratégias que, no fundo, só os usam.

Entre estes dois mundos (o dos "actores" e o dos "autores" das notícias, o das fontes de informação e o dos jornalistas) não há, como parece sugerir o leitor, uma simples relação de cumplicidade, que levaria a que os jornais apenas fizessem ecoar junto da opinião pública o que determinados protagonistas públicos desejam. Entre estes dois mundos há uma relação muito complexa, que tanto é cúmplice como é tensa, tanto é amigável como é crispada, tanto é de anúncio como de denúncia, tanto é de mera reprodução como de distância crítica. São dois mundos com papéis diferentes na sociedade e que funcionam (devem funcionar) com lógicas diferentes.

Um político está no seu papel ao tentar convencer um jornal a cobrir um evento que protagoniza. E para isso actua directamente, recorre a assessores, contrata agências, seduz jornalistas... Tudo bem. Mas só conseguirá fazê-lo da maneira que deseja se, do outro lado, encontrar jornalistas distraídos, incompetentes ou venais, mais desejosos de o servir a ele do que ao público leitor, profissionais que se demitam do seu ofício. E qual é ele? É avaliar a pertinência do assunto por critérios jornalísticos e não outros, é ir ouvir outras partes envolvidas (mesmo que isso não interesse ao interessado...), é confirmar as informações junto de fontes distintas, é enquadrar os factos com elementos que ele próprio investigue, é dar iguais oportunidades a todos. Fazendo-o, está 'apenas' a evocar e a aplicar as "regras do jogo" do campo específico e autónomo que é o seu, recusando lógicas instrumentais às mãos de quem quer que seja. Não o fazendo, sim, arrisca-se a ser manipulado - e a manipular quem o lê.

Voltaremos ao assunto, que ele merece.

EM SÍNTESE

Manipulação Haverá sempre quem tente manipular os jornais mas estes não podem abdicar do seu papel

Fontes A relação entre os "autores" e os "actores" das notícias é tudo menos simples

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