A Propósito do Terrorismo
Por JOAQUIM FIDALGO
Domingo, 6 de Maio de
2001 É ou não correcto, em textos noticiosos, chamar
"terrorista" à ETA? Trata-se de uma qualificação objectiva ou de um juízo de
valor que toma partido no conflito sangrento que dilacera o País Basco? Ou trata-se de
ambas as coisas - mas em nome dos valores basilares de uma sociedade democrática?
Há palavras que têm um enorme peso. "Terrorista", por exemplo. Ciente da
responsabilidade que implica usar certos qualificativos, o Livro de Estilo do PÚBLICO
recorda aos seus jornalistas uma importante norma de conduta: "Rigor na terminologia
com determinada carga semântica". E especifica: "Atenção à utilização de
vocábulos como: terroristas, nacionalistas, fascistas, rebeldes, bandidos armados,
patriotas, revolucionários, contra-revolucionários, democratas, imperialistas,
totalitários, reaccionários, progressistas, mundo livre, ou bandidos, forças da ordem,
etc. A necessidade de qualificar acontecimentos, organizações ou pessoas não deve ser
confundida com juízos de valor".
Foi invocando este preceito que o leitor J. B. César dirigiu ao provedor algumas
críticas sobre o tratamento jornalístico, por parte do PÚBLICO, do conflito no País
Basco entre a organização separatista ETA e o Estado espanhol. Diz: "Sob o ponto de
vista de um jornalista do PÚBLICO, é ligeiro e denota juízos de valor preconcebidos
classificar uma das partes da contenda de 'terrorista'. (...) Os pruridos dispensados a
quem coloca bombas ou dispara tiros na nuca a adversários desarmados poderão soar a
cinismo. (...) Mas do que aqui se fala é do tratamento noticioso que se está a dar a um
facto político que, infelizmente, resvalou para a luta armada. E, nesse contexto,
parece-me que (...) não deveria o jornalista de Madrid [Nuno Ribeiro] envolver-se em
análises subjectivas de carácter pessoal (...) ou tomar partido por uma das bandas de um
conflito".
Que tem o jornalista Nuno Ribeiro a dizer sobre isto? "A Espanha é um Estado
democrático e, ainda antes da aprovação, em 1978, da actual Constituição, uma
amnistia pôs em liberdade os militantes da ETA que lutaram contra a ditadura franquista.
É precisamente nesta diferença, fundamental, - a existência de um Estado democrático
-, que se situa a fronteira que leva a considerar a violência da ETA como terrorista.
Não se trata de um adjectivo mas de um substantivo, não de uma apreciação subjectiva
mas de uma realidade concreta".
No mesmo sentido, aliás, se pronuncia o director do PÚBLICO: "'Terrorista' é
uma palavra com indiscutível carga semântica cuja simples utilização pode implicar um
juízo de valor. Mas não só: em simultâneo, 'terrorista' é um conceito objectivo que
identifica uma determinada forma de actuar politicamente". No que se refere à ETA,
José Manuel Fernandes defende que o termo "terrorista" é "duplamente bem
aplicado", pois "define com justeza o carácter da organização [como lê no
dicionário, "terrorismo" é "o emprego sistemático da violência para
atingir um fim político"] e traduz, ao mesmo tempo, a avaliação negativa que o
PÚBLICO faz da sua actuação". Isto porque o jornal "não é neutro" no
que toca à defesa dos valores democráticos.
Há um ponto importante para o qual Nuno Ribeiro chama a atenção: a ETA não é a
única organização, em Espanha, que reclama soluções independentistas. Mas há uma
diferença: "Existem partidos políticos e associações que também propõem os
mesmos objectivos, difundindo e trabalhando politicamente a sua mensagem, sem recorrerem
aos tiros na nuca ou às bombas."
Não será demais realçar este aspecto, até porque o mesmo Livro de Estilo que
recomenda aquelas cuidados iniciais também escreve, logo a seguir: "A imparcialidade
não é sinónimo de neutralidade quando estão em causa valores fundamentais da vida em
sociedade. O PÚBLICO e os seus jornalistas não se sentem obrigados a ser 'imparciais'
nos conflitos entre liberdade e escravidão, compaixão e crueldade, tolerância e
intolerância (...)", etc. Ora, definir o conflito que opõe a ETA ao Estado espanhol
(e à maioria da sociedade) como uma mera "luta política", sem ligar aos
métodos violentos de que os "etarras" indiscriminadamente lançam mão, e
esquecer que tudo isto se passa no contexto de um democracia e não de uma ditadura,
parece redutor. Escamoteia o verdadeiro problema, por muita volta política ou ideológica
que se lhe queira dar.
Mas não pode haver também um "terrorismo de Estado"?, objectar-se-á. Será
que os métodos de luta contra a ETA por parte de um aparelho estatal, só porque
globalmente legitimado pelo edifício da democracia, são imunes à crítica e autorizados
a qualquer arbitrariedade? Claro que não. Também os instrumentos legítimos de um Estado
democrático (tribunais, polícias, tropas) não estão acima da lei e não têm os meios
justificados pela suposta bondade dos fins. Não podem, contudo, colocar-se no mesmo plano
as duas bandas do conflito, uma vez que uma delas se auto-excluiu das regras do jogo da
democracia e outra, mesmo se comete excessos, está dentro dele. Aliás, deve mesmo ser
seu garante.
Assinalar esta diferença fundamental não significa ter "dois pesos e duas
medidas". Isso só sucederia se o jornalista fizesse vista grossa a desmandos das
forças policiais ou do Estado, desculpando-as pela "boa causa" que seria
"combater o terrorismo". Não. Havendo ilegalidades, violências, abusos, mesmo
cometidos contra criminosos, eles devem ser expostos e denunciados sem tibiezas ou
pruridos de "politicamente correcto". Mas daí a defender que uma organização
como a ETA e um Estado como o espanhol se situam, à partida, no mesmo plano da "luta
política", vai um passo excessivo.
O jornalista do PÚBLICO em Madrid recorda, a propósito, o trabalho do jornal no caso
dos "autodenominados Grupos Anti-Terroristas de Libertação [GAL], que em finais da
década de 80 cometeram 28 atentados e provocaram 30 mortos". Como lembra, "o
enredo dos GAL foi no PÚBLICO considerado como terrorismo ao abrigo do aparelho de
Estado, como ficou provado nas sentenças que condenaram à prisão um ex-ministro
socialista do Interior e o seu secretário de Estado da Segurança". Ou seja, o
próprio Estado democrático acabou por punir quem, sob a sua protecção, se pôs de fora
da legalidade e adoptou métodos semelhantes aos da organização que combatia.
Não ter "dois pesos ou duas medidas" não é tratar tudo, à partida, por
igual - esse pode bem ser o caminho para, sob o alibi de uma exemplar
"imparcialidade", deixar fugir a verdade que se oculta por trás dos factos. O
que importa é tratar por igual o que é igual, mas deixar claras as diferenças quando as
há.
O PÚBLICO pede "atenção" ao uso de certos qualificativos; não o proíbe.
Que a eles se recorra com cuidado e ponderação - mas também sem problemas ou rodeios
quando o que está em causa são, como parece ser aqui o caso, valores essenciais da
convivência numa sociedade democrática.
EM SÍNTESE
Terrorismo - A luta política em democracia não é indiferente aos métodos utilizados
Juízos - Ter só "um peso e uma medida" não significa tratar tudo por igual
Contactos do provedor do leitor:
Cartas: Rua João de Barros, 265 - 4150-414 PORTO
Telefones: 22-6151000; 21-7501075
Fax: 22-6151099; 21-7587138
E-mail: provedor@publico.pt
|
|
|