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Verdades e Mentiras
Por JOAQUIM FIDALGO
Domingo, 18 de Março de 2001

Se toda a gente, dos mais variados credos e quadrantes, parece concordar que a cobertura mediática da tragédia em Castelo de Paiva teve excessos inaceitáveis, como explicar que se tenham cometido, e repetidamente após os primeiros dias, tais excessos?

Se, há escassos meses, toda a gente se tinha manifestado contra a desmesura da atenção noticiosa a um indivíduo barricado nas instalações da RTP, como se entende que, tão pouco tempo decorrido, novo barricado produza novos destemperos, a ponto de fazer surgir um "pacto de moderação" entre os media?

Se a generalidade dos responsáveis de órgãos de comunicação social, cujas opiniões fomos podendo conhecer, parece navegar também à feição deste sereno vento, clamando por uma maior contenção, por que raio (ou a mando de que etéreo patrão) prosseguem os exageros?

E, já agora: se ninguém, de entre os ditos responsáveis, consegue ver qualquer ponta de excesso nos trabalhos da "sua casa" mas apenas os imputa à "casa do vizinho" - que, por sua vez, logo rejeita a acusação e a devolve ao acusador -, onde é que estão os ditos excessos?... São invenções?...

Mais: se a assunção de algum exagero, nos casos raros em que tal sucede, é de imediato desculpada (!!!) com o facto de "só fazermos assim porque a concorrência a isso nos levou", até onde chegamos dentro deste círculo vicioso sem escape?

Finalmente, podemos ainda interrogar-nos sobre o motivo generalizadamente invocado para este tipo de coberturas mediáticas: o de se estar a "satisfazer o público", a "servir as audiências", a "ir ao encontro das expectativas das pessoas". Mas, do que vamos ouvindo em tanto lado, em casa, na rua, no café, no trabalho - e não só da pena de quantos escrevem nos jornais ou falam nas rádios e televisões -, parece que praticamente ninguém concorda com o que os "media" têm feito nestes casos complicados. Ninguém concorda com horas e horas de directos para mostrar nada ou repetir o sabido, ninguém acha bem as correrias desenfreadas com que se mostra "estar em cima e à frente" de um suposto acontecimento, ninguém aprecia as invasões da privacidade alheia, ninguém aplaude o aproveitamento espectacular da dor ou do sangue. Mas então... porquê?... A que título?... Anda tudo enganado e a enganar-se, julgando servir bem um público que, afinal, se está a servir pessimamente e até contra a sua vontade?...

Postas assim as coisas, é tudo muito estranho. Se não concorda quem faz o serviço. nem quem o manda fazer, nem quem o recebe, como explicar que tudo isto continue a fazer-se, e tanto, e cada vez mais? A conclusão parece impor-se: anda por aqui muita gente a mentir.

Se estes desatinos informativos (onde por vezes nem se vislumbra qualquer informação digna desse nome...) surgissem ao arrepio da lógica dominante na nossa paisagem mediática, e sobretudo televisiva, ainda se podia admitir que era tudo um grande equívoco suscitado por circunstãncias dramáticas anormais. Mas não. Como já aqui se defendeu na semana passada, estes modos de fazer inscrevem-se lindamente numa lógica mais vasta, mais global, que tem contaminado boa parte da comunicação social, e onde o rigor, a distância crítica, a prevalência de critérios jornalísticos, o escrúpulo ético, o respeito pela inteligência dos leitores/ espectadores, cedem o passo à espectacularização, à ligeireza, ao aproveitamento primário da emoção ou da dor, ao seguidismo pacóvio, ao sensacionalismo em todas as suas dimensões.

Neste contexto, é simplesmente fabuloso que alguns dos conhecidos arquitectos (e empreiteiros...) desta lógica, tributária do simples comércio e do sucesso rápido, venham agora lamentar-se por serem "obrigados" a fazer o que, lá no fundo, até nem desejam. E quem os obriga? Segundo Emídio Rangel, director da SIC, é o "espírito mórbido que campeia neste país" - mas quem é que o espevitou, adulou, acarinhou e até justificou?... Ou é o "estilo sensacionalista/terrorista" da TVI - mas com quem aprendeu ela as primeiras letras do que está agora a levar a limites mal imaginados?... Mudam-se os tempos, mudam-se as audiências - e mudam-se as vontades.

Responsabilizar esta lógica global por todos os desvarios e carregar as costas do "sistema" não pode fazer-nos esquecer que ele também é composto de gente concreta, de responsáveis que tomam decisões, de gestores que estimulam escolhas, de editores e jornalistas que diariamente fazem o trabalho e o servem ao público. E, há que dizê-lo, não são todos exactamente iguais, não se guiam todos pela mesma cartilha, não soçobram todos perante a dificuldade dos desafios que se lhes colocam. Para além dos constrangimentos directos ou indirectos em que se movem, algum espaço lhes sobra de autonomia e liberdade para, quando seja caso, também poderem interrogar, reclamar, ou mesmo dizer "não", recordando princípios fundamentais a que estão vinculados em nome do serviço público que devem à comunidade.

E se, como avisadamente escrevia Mário Mesquita há dias (ver PÚBLICO de 16/3), a deontologia "não possui virtualidades suficientes para explicar as transformações políticas, sociais, tecnológicas e retóricas da comunicação social, nem as frequentes 'derrapagens' mediáticas", também não fará mal admitir que, para algumas das 'escorregadelas' a que temos assistido, um pouco mais de sentido ético e de rigor deontológico talvez fizessem a sua pequena diferença.

Os jornalistas, que sempre são tão lestos a exigir responsabilidades quando alguma coisa corre mal no país, só ganharão em desenvolver a sua própria capacidade de encaixe face a críticas pertinentes, e sobretudo capacidade de auto-crítica, tanto no plano individual como no dos colectivos em que inscrevem a sua actividade (desde a redacção ao conjunto do grupo profissional). A deontologia não é tudo, longe disso; mas é uma parte, mesmo pouco aparatosa, de entre as muitas sobre que vale a pena actuar para tentar inflectir este rumo de coisas. E é uma parte que está ao nosso alcance, que nos interpela directamente, que não nos permite mandar com as culpas todas para o vizinho do lado - ou para o "sistema".

De resto, convirá não esquecer que, mesmo nestes episódios difíceis da ponte de Castelo de Paiva, também por cá tivemos vários bons exemplos, individuais e colectivos, de informação séria, comedida, respeitadora da dignidade das pessoas envolvidas, e nem por isso menos viva ou menos cativante. Ou seja: também é possível. Não basta ingenuamente querer que assim seja para que seja de facto, mas é preciso começar por querer.

Sem mentir, claro.

EM SÍNTESE

Desculpas - Faz-se o que se faz só porque a concorrência a tal nos "obriga"?...

Deontologia - Maior rigor deontológico não resolve tudo mas pode fazer alguma diferença

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