Quem Semeia Ventos...
Por JOAQUIM FIDALGO
Domingo, 11 de Março de
2001 A ninguém espantará que, nos últimos dois meses, tenham sido
"já" três os casos de indivíduos que se barricaram algures, chamando
ameaçadoramente a atenção pública para os seus dramas privados. O que espanta é que,
neste lapso de tempo, tenham sido "só" três as encenações espectaculares de
situações mais ou menos rocambolescas, mas feitas à justa medida do apetite voraz de
televisões, rádios e jornais.
Que é que, afinal, leva um homem a barricar-se num centro comercial com um telemóvel e
uma arma (duas armas?...), prendendo um refém, prometendo uma loucura, clamando contra as
suas desgraças familiares - mas, perspicaz, exigindo falar apenas "em directo"
para os microfones? Onde é que ele aprendeu a fazer assim as coisas? Foi só nos filmes?
Quem é que lhe ensinou este caminho para um garantido sucesso de horas e horas de tempo
de antena na cena mediática de todo o país?
Foi aqui, hoje, connosco, que ele aprendeu. Não inventou nada. Não descobriu nada. Não
forçou nada. Limitou-se a dar à comunicação social aquilo que a comunicação social,
por tantos e tão variados modos, progressivamente vem dizendo que quer: drama encenado à
maneira do real, espectáculo com "gente vulgar", emoção,
"suspense", imagens fortes e ao vivo - mas sempre "exclusivas", claro,
que o mercado está muito competitivo e chegar um segundo à frente dá um dia inteiro de
auto-glorificação. O que é preciso é andar a correr, e mostrar em directo que se anda
a correr, mesmo que seja para chegar a nenhum lado... ou a nada. Só que depois, ao menos
para justificar a corrida, há que transformar o nada em qualquer coisa. Natural ou
forçada, exacta ou produzida, real ou virtual, que importa? A audiência espera, vamos
lá, "it's show time!"
Neste contexto, também espanta pouco que, quando tragédias verdadeiras nos caem em cima
com a indizível crueza da da ponte de Castelo de Paiva, os "media" se atirem a
elas com uma sofreguidão desajeitada e esqueçam (melhor: continuem a esquecer...) um
sentido mínimo de medida, de pudor, de respeito pela dignidade humana, quando se trata de
transmitir a dor alheia. Sim, que é preciso, nestes casos, transmitir a dor. Faz parte de
uma informação viva, completa e próxima das pessoas. Mas, de tão viciados que estamos
em espectacularizar o drama, até parece que nós, jornalistas, já nem sabemos onde e
como encontrar essa justa medida, esse ponto intermédio de bom senso que não descarna a
informação nem a reduz à frieza das descrições técnicas, mas também não a submerge
na avalancha do sangue e das lágrimas que impede de ver as coisas mais fundo do que à
flor da pele. Há um meio termo, por muito pouca prática que dele tenhamos.
Registe-se o pacto feito, esta semana, por um conjunto de órgãos de comunicação social
(na sequência de uma proposta da Rádio Renascença), no sentido de não amplificarem
desmesurada ou artificialmente as situações de "ocupação violenta de
espaços" por pessoas que mais não pretendem do que "fazer valer pontos de
vista privados".
Louva-se a chamada de atenção, colectivamente partilhada, embora de facto ela nem
devesse ser necessária, pois nada acrescenta aos princípios éticos e profissionais que
regem todo o órgão de informação ciente das suas indeclináveis responsabilidades
sociais e não rendido a puras lógicas de mercado ou sensação. Mas é bom lembrar
princípios quando eles andam esquecidos. E, sobretudo, insistir num aspecto
importantíssimo: muitos destes excessos mediáticos (tanto nos programas informativos
como nos de entretenimento) não se combaterão nunca por decreto, e ainda bem. Sabe-se
como começam as restrições legais à liberdade de informação ou expressão mas
raramente se sabe onde vão parar... E, como alguém dizia esta semana, o sensacionalismo
até nem é ilegal: é, sim, um aproveitamento perverso de um inestimável bem - o direito
à informação - que só desaparecerá se as pessoas deixarem de o querer, reclamando
alternativas mais estimulantes.
Portanto, neste domínio, o que há a fazer (até para contrariar apelos populistas a uma
maior intervenção do poder político na esfera mediática) é dar exemplos da vontade de
fazer as coisas de uma outra maneira, mais respeitadora das pessoas, mais exigente em
termos éticos, mais genuína no que toca à responsabilidade de informar. Sem que sejam
precisas novas leis ou vigilâncias policiais, há já algumas iniciativas de
auto-regulação - e mais poderá haver - para que a actividade jornalística, nos
diferentes patamares de intervenção (empresários dos "media", directores de
informação, conselhos de redacção, jornalistas colectiva e individualmente
considerados), arrepie caminho e reencontre a sua mais nobre vocação de contribuir para
a existência de cidadãos informados, exigentes, críticos e participativos.
Sem querer desculpar os cidadãos anónimos que se barricam para ter acesso aos
"media" e aí gritar de sua justiça, convirá não esquecer que muita gente
real, com problemas reais já não do foro privado, se vai também habituando à quase
obrigação de preparar uma cena "forte" para conseguir chegar aos grandes
órgãos de informação. É difícil decidir-se uma reportagem sobre uma estrada em
ruína sem que um grupo corte a estrada; não se fala da falta de médicos em tal terra
longínqua a não ser quando os pacientes, já desesperados, decidem uma greve; só se
chama a atenção para a falta de uma passagem de nível no momento em que o povo, farto
do silêncio, faz parar os comboios... Também é deste caldo que nascem, depois, os
barricados. Também aqui haverá matéria de reflexão sobre a informação que (não)
damos e as prioridades de agenda pública a que (não) atendemos. Quem semeia ventos,
arrisca-se a colher tempestades.
Em contrapartida, não falta quem não precise minimamente de se barricar para sair nas
notícias quando e como quer. Personalidades muito conhecidas do mundo da política ou do
desporto, para só falar dos exemplos mais frequentes, marcam uma "conferência de
imprensa" - daquelas que nem autorizam perguntas... - para a hora dos telejornais e,
quase num reflexo pavloviano, lá vai toda a comunicação social transmitir em directo as
declarações dos senhores, quantas vezes meros expedientes de auto-promoção ou de
chicana. Mas como é o ministro A, o político B, ou o treinador C...
Quem sabe, talvez um destes dias os "media" voltem à mesa da auto-regulação e
decidam, também nestes casos, deixar de "multiplicar e empolar publicamente"
assuntos de nula relevância para o bem comum, e cuja amplificação sem critério
jornalístico igualmente "subverte ou desvirtua a verdadeira vocação dos meios de
comunicação social".
EM SÍNTESE
Barricados - Também há muito quem não precise de se barricar para ser notícia quando
bem quer
Pacto - Só mais auto-regulação pode vincular os "media" à sua genuína
função social
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