Em Favor da Transparência
Por JOAQUIM FIDALGO
Domingo, 4 de Março de
2001 Que faz o provedor do leitor quando é chamado a pronunciar-se sobre
alguma matéria saída no jornal? Antes de emitir opinião, procura perceber melhor os
factos e as circunstâncias que enquadraram a decisão de publicar a dita matéria, bem
como o fundamento das críticas que lhe tenham feito chegar. Faz um trabalho semelhante ao
do jornalista: ouve as duas partes, atende às explicações de uma e outra banda, recolhe
argumentos e contra-argumentos. Tenta, afinal, ir um pouco além do texto publicado, na
busca de elementos que fundamentem um parecer. E de tudo isso dá conta aos leitores, para
que eles próprios possam acompanhar o raciocínio feito - ou, dispondo também dos dados
da questão, cheguem eventualmente a conclusão diversa da do provedor (que é tudo menos
infalível...). Importa é que todos possam pensar pela sua própria cabeça, conhecidas
as razões das partes em litígio.
Este trabalho de recolha e divulgação dos elementos de contexto de um dado texto está,
no caso que hoje nos ocupa, algo prejudicado. O ministro José Sócrates queixou-se ao
provedor pelo modo como foi tratado, nas páginas do PÚBLICO, o assunto da concessão de
um subsídio governamental de 200 mil contos à DECO para aquisição das suas novas
instalações (edição de segunda-feira, 19/2). Mas não se ficou por aí. Reclamou
também, junto do jornal, o uso do "direito de resposta", tendo feito publicar,
dois dias depois, uma carta com as suas críticas. No seguimento, o jornalista
responsável pelo trabalho, José António Cerejo, avançou com um outro texto em que dava
a sua opinião pessoal sobre a controvérsia e treplicava ao ministro. Dias mais tarde,
nova e desenvolvida prosa de José Sócrates aparecia nas páginas do PÚBLICO, repisando
os argumentos anteriores e verberando o comportamento do jornal. Na oportunidade, também
a Direcção do PÚBLICO disse o que se lhe afigurava pertinente sobre as opções
editoriais tomadas.
Quer isto dizer que os leitores receberam abundantíssima informação sobre o assunto
DECO, sobre os antecedentes da publicação e sobre o modo como autores e visados
reagiram. As duas partes em confronto - jornal e ministro - explicaram com grande
profusão de detalhes (e até com excessos de linguagem perfeitamente escusados, tanto de
uma banda como de outra...) as respectivas razões.
Assim, julga o provedor que os leitores dispõem de todos os dados da questão para
pensarem por sua cabeça e decidirem - se é que não o fizeram já - para que lado deve
pender a balança. O mesmo é dizer, quem tem ou não tem razão. Ou quem tem mais e quem
tem menos, que nestas polémicas quase nunca vai a razão toda para uma parte só.
Não parece útil repetir aqui os argumentos já apresentados nem tem o provedor, daquilo
que ouviu aos diversos intervenientes, qualquer novo dado relevante. Portanto, face aos
elementos de todos conhecidos, chamaríamos apenas a atenção para dois pontos.
Primeiro: José Sócrates teve todas as oportunidades, antes e depois da publicação do
trabalho, de apresentar as suas versões e opiniões. Se entendeu fazê-lo mais
"depois" do que "antes" (José António Cerejo lamenta não ter
conseguido nunca chegar à fala com o ministro durante os "mais de três meses"
que durou a sua investigação, tendo recebido respostas apenas do chefe de gabinete), lá
saberá porquê. Mas não pode queixar-se da generosidade com que o PÚBLICO lhe abriu as
suas páginas, sendo certo que a interpretação que defende era largamente citada já na
reportagem original.
Atento tudo o que foi publicado, algum leitor pode hoje afirmar que não conhece
suficientemente as razões de José Sócrates neste diferendo? E se ele está tão seguro
de que actuou de modo jurídica e politicamente "irrepreensível", não tem
motivos para se preocupar: os leitores não são parvos e, tendo tido acesso aos seus
argumentos, não deixarão nesse caso de lhe dar razão...
Segundo: o grande nó desta controvérsia não radica propriamente nos factos - por isso
será difícil imputar "falsidades" ao trabalho do PÚBLICO - mas na
interpretação de certos actos. Mais especificamente, na alegada intenção com que
certos actos foram praticados. Ora, se é sempre muito complicado avaliar as reais
intenções de um político quando toma uma decisão (por muito que ele garanta, como
todos sempre fazem, que nada há de menos transparente), o jornalista pode e deve, em
contrapartida, analisar os efeitos visíveis dessa decisão. E, a partir daí, deixar no
ar as suas legítimas interrogações.
Veja-se o assunto do "segredo". José Sócrates garante que não teve qualquer
preocupação em tratar sigilosamente do subsídio à DECO. Não o escondeu, e a prova é
que até saiu (como tantas, tantas outras coisas!) em Diário da República. Mas, se assim
é, como explicar que só agora, mais de um ano passado sobre a decisão, se tenha sabido
- a partir da notícia do PÚBLICO - que tinha sido um subsídio de 200 mil contos, e
destinado a custear integralmente a aquisição da nova sede da DECO? Como explicar que
nem as outras associações de consumidores com expressão nacional, e portanto mais
interessadas do que ninguém em saber da possibilidade destas subvenções, estivessem a
par do assunto? Sim, que uma coisa é dizer (como disse a DECO num comunicado) que a nova
sede resultara "de uma campanha de angariação de fundos, de receitas próprias e de
um subsídio da Secretaria de Estado para a Defesa do Consumidor", outra coisa é
dizer que o Governo lhe deu um subsídio de 200 mil contos para adquirir quase na íntegra
as suas novas instalações. Não sendo indiscutível, além do mais, que a legislação
em vigor desde 1995 - e entretanto alterada por Sócrates - abrisse a possibilidade de
subsídios com este objectivo. E, se abria, estranhamente nunca ninguém aproveitara.
É claro que os jornalistas podiam ter estado mais atentos e ter perguntado na altura.
Garante o ministro que, se tal acontecesse, teriam tido todas as respostas.
Mas é igualmente claro que o Governo, se não escondeu a atribuição do subsídio,
também fez pouco ou nada para o publicitar. Admite-se que tenha escolhido esse caminho
não para ocultar à opinião pública uma decisão de duvidosos contornos, mas para
escapar à dor de cabeça (que sofre agora...) de ver as associações congéneres pedindo
apoios semelhantes. Seja por este ou aquele motivo, a verdade é que contribuiu para que o
tal subsídio passasse praticamente despercebido, e com isso alimentou especulações.
Quando nada há a esconder, é sempre preferível divulgar tudo logo no momento, e com
todo o pormenor, assumindo politicamente a decisão. Não é, afinal, o que faz qualquer
Governo, e com enorme espavento, quando a publicidade lhe interessa?...
EM SÍNTESE
Governo Quando não há nada a esconder, diga-se tudo na altura certa para
impedir especulações
Juízos Uma decisão aprecia-se não só pelas suas intenções mas também
pelos seus efeitos concretos
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