A Droga Não
É Simples...
Por JOAQUIM FIDALGO
Domingo, 4 de Fevereiro
de 2001 Falar de droga é sempre muito complicado. O problema toca-nos de
perto (haverá um leitor, um só, que não tenha uma história para contar, ligada a um
familiar mais ou menos chegado, a um vizinho, a um amigo, a um colega dos filhos?...),
envolvendo por isso a razão mas também o coração, as emoções, os afectos. Depois, os
caminhos para lidar com a toxicodependência são sempre tão complexos, tão melindrosos,
tão feitos de procura, de persistência, de dúvida, que não espantam as polémicas
frequentes por eles desencadeadas.
Viu-se, esta semana, a propósito da legislação que possibilite a instalação de salas
de injecção asséptica (as "casas de chuto") e, assim, pelo menos se diminua o
sofrimento ou o risco de vida de tantos, tão graves doentes.
Viu-se, também esta semana, a propósito de uma reportagem forte mas cheia de
méritos, transmitida pela SIC - sendo que, entre todos os outros, não foi pequeno
mérito "dizer-nos" que, face a trabalhos jornalísticos criativos e
competentes, as audiências até se esquecem das historinhas com que as entretêm sem
descanso.
Viu-se, enfim, pelos comentários críticos enviados ao provedor por dois leitores do
PÚBLICO, a propósito de um trabalho publicado recentemente no caderno Local-Lisboa,
tendo como motivo o Casal Ventoso e as acções de combate à toxicodependência que lá
se desenvolvem.
É este último ponto que hoje nos ocupa.
Quem, distanciadamente, leia as diversas peças publicadas sobre o assunto (incluindo
textos de opinião de responsáveis), fica com uma impressão clara: há um óbvio
mal-estar entre algumas das estruturas que naquele bairro lisboeta se ocupam da
toxicodependência, porventura com base em concepções divergentes sobre como lidar com o
problema - e a jornalista do PÚBLICO, Catarina Serra Lopes, pode ter sido
involuntariamente "apanhada no meio" dessas guerras.
O mal-estar parece centrar-se na relação entre as chamadas "equipas de rua" -
que entraram mesmo em greve de fome como protesto contra a sua alegada substituição - e
o Plano Integrado de Prevenção da Toxicodependência no Casal Ventoso, que engloba um
Gabinete de Apoio, um Centro de Abrigo e um Centro de Acolhimento.
O diferendo pode não ser relevante para as notícias sobre este ou aquele tema concreto
mas, pelo menos, obriga qualquer jornalista a cuidados redobrados para não se arriscar a
ser instrumentalizado por qualquer das partes: cuidados redobrados na confirmação de
informações (desejavelmente, sempre com mais de uma fonte) e cuidados redobrados na
atribuição de informações a fontes não identificadas, sobretudo se são "parte
interessada". E, aqui, convém não esquecer uma regra importante do Livro de Estilo
do PÚBLICO que, infelizmente, continua a ser bastante desrespeitada: "Quando se
trata de opiniões, o PÚBLICO só reproduz as que forem atribuíveis a fontes claramente
identificadas". há circunstâncias que justificam a não identificação da fonte
que faculta certas informações factuais. Mas o mesmo não sucede quanto a comentários,
críticas, juízos de valor: aí, quem quer ter opinião deve dar o nome...
Algumas pequenas incorrecções apontadas pelo leitor Nuno Silva Miguel à reportagem de
Catarina Serra Lopes podem ter tido origem numa insuficiente verificação dos dados ou no
crédito imediato que foi dado a certas fontes eventualmente pouco conhecedoras.
É verdade que quem pode oficialmente dar as informações correctas nem sempre as dá no
momento desejado (como parece ter acontecido, segundo diz a jornalista, com o coordenador
do Gabinete de Apoio do Casal Ventoso, Rodrigo Coutinho - que é, aliás, o outro leitor
que endereçou críticas ao provedor sobre este assunto), dispondo-se a fornecer
esclarecimentos muito minuciosos só depois de ver publicadas as matérias no jornal. É
pena, pois perde-se tempo. Mas nem por isso um jornalista pode, à falta de informações
totalmente fidedignas, afirmar certezas com base no que lhe disse esta ou aquela pessoa do
meio, para mais não identificada. Aqui, é aconselhável alguma prudência.
De prudência se poderá falar, também, a propósito de um dos mais controversos temas
abordados na reportagem do PÚBLICO: a avaliação do programa de tratamento de
toxicodependentes por meio da metadona.
A peça do jornal intitulava-se: "Toxicodependentes do Casal Ventoso queixam-se do
programa da metadona - 'Isto é tudo uma palhaçada'", e mereceu duros reparos dos
dois leitores atrás referidos, quer porque teriam sido ouvidos "apenas dois
toxicodependentes e membros não identificados das 'equipas de rua'", e nenhum
responsável directo do programa, quer porque a reportagem significaria uma
"injustiça" para todos os que se vêm empenhando naquela forma de tratamento.
A jornalista diz que não ouviu "só dois" toxicodependentes mas, face às
limitações de espaço, escolheu os depoimentos que "melhor demonstravam a opinião
geral". Sobre responsáveis, recorda ter recolhido a opinião da presidente do
Instituto Português da Droga e da Toxicodependência e também a de Rodrigo Coutinho - o
que este nega ("a mim nada me foi questionado sobre o dito programa!").
Que transparece para a opinião pública uma impressão claramente negativa do programa da
metadona em curso no Casal Ventoso (bem patente no título: "Isto é tudo uma
palhaçada"), não haverá dúvidas. Que, no texto, há quem se pronuncie deste modo
tão contundente, também é certo. Mas... será que esta abordagem algo simplista dará
justa conta da enorme complexidade do problema e da multiplicidade de opiniões que sobre
ele sabemos existirem? Não será precipitado classificar tão taxativamente um programa,
como o do tratamento por via da metadona, que tem ocupado milhares de pessoas em tanto
lugar, genuinamente à procura de modos eficazes de combater a toxicodependência - e com
resultados, ao que se sabe, nem sempre desanimadores?
Lendo o texto, até se percebe, curiosamente, que as críticas não são tanto dirigidas
ao programa em si, como ao facto de ele se desenrolar naquele local, onde as
solicitações para a droga existem a cada esquina. Mais uma razão para questionar
título tão generalizador e globalmente negativo como aquele.
Se se encontra quem afirme que o programa "é uma palhaçada", também se
encontraria, porventura, quem dissesse que o programa "é o paraíso". Fazer
título só com esta última apreciação seria um excesso de sentido oposto. Porque, em
questões controversas como estas, nada é apenas "uma palhaçada" ou apenas
"o paraíso"; tem um bocadinho de tudo e merece, por isso, uma abordagem
jornalística prudente e alargada. Reduzir as coisas a "preto ou branco", como
é tão frequente nos jornais, faz-nos passar ao lado da sua complexidade. E então
falando de droga...
EM SÍNTESE
Fontes As opiniões devem ser sempre atribuídas a fontes claramente identificadas
Droga Reduzir os programas de tratamento por metadona a "uma palhaçada" é tão
excessivo como considerá-los "um paraíso"
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