.
Em Dia de Votos, Notícia Foi Quem Não Votou
Por JOAQUIM FIDALGO
Domingo, 21 de Janeiro de 2001

De tão previsíveis que, genericamente, já eram, os resultados da recente eleição presidencial não suscitaram polémica: ganhou quem se antevia que ganhasse, perdeu quem se adivinhava que perdesse, e as próprias percentagens relativas, mais ponto menos ponto, foram acolhidas sem surpresa nem alvoroço.

Também por isso - mas ainda porque se verificou, em boa verdade, um número anormalmente elevado de ausentes na urna do voto -, houve que deslocar a discussão da zona dos "resultados expressos" para a zona dos "resultados não expressos". Ou seja, para a abstenção. E foi assim que, na edição de segunda-feira passada, o tom geral do trabalho do PÚBLICO sobre as eleições surgiu (mais, porventura, do que noutros jornais) fortemente marcado por esse enfoque particular. De abstenção e de abstencionistas se falou em muitos e variados textos, glosando o mote lançado pelo título gordo da primeira página: "Abstenção ensombra vitória de Sampaio".

Alguns leitores não gostaram, vendo nesta leitura uma "desvalorização" da vitória de Jorge Sampaio para um segundo mandato presidencial.

Depois de lembrar que o presidente "foi reeleito com quase um milhão de votos de diferença, 21 por cento em percentagem, por maioria absoluta, à primeira volta", pergunta o leitor Mário Paz: "A abstenção? Querem fazer esquecer a quase unanimidade com que a generalidade dos órgãos de Comunicação Social (PÚBLICO e director incluídos), candidatos (Ferreira do Amaral como única excepção), sondagens, 'elegia' o presidente Sampaio muito antes de 14 de Janeiro, bem como as desavenças entre o PSD e o PP, que evidentemente desmobilizaram os seus simpatizantes e dirigentes?".

Dizendo-se "incomodado" com a "parcialidade" do jornal, Mário Paz recorda alguns dos títulos da edição para defender a sua tese: "Abstenção ensombra vitória de Sampaio"; "Bandeiras foram só para a TV"; "Uma noite triste"; "Abstenção faz história"; "Sampaio é presidente reeleito com menos 600 mil votos"; "Portas aproveita-se dos abstencionistas"; "Participação decepcionante em todo o lado - Abstenção de 94 por cento na emigração".

Sem papas na língua, outro leitor, de seu nome José Eduardo, mostra-se "indignado pela forma como o PÚBLICO tentou desvalorizar a vitória de Jorge Sampaio". E adianta: "Em democracias, é uso respeitarem-se os desejos dos eleitores expressos nos votos e cumprimentarem-se os vencedores. Ao contrário, o PÚBLICO desvaloriza a vitória e quase responsabiliza o vencedor, ao fim e ao cabo o mais penalizado pela abstenção, pela elevada percentagem de abstencionismo".

Na sua qualidade de emigrante, José Eduardo contesta igualmente, agora em termos factuais, alguns dos números adiantados pelo jornal sobre as votações em determinadas cidades alemãs - e, em consequência, a taxa de 94 por cento de abstenção para aquele círculo. Esclareça-se, desde já, que o leitor tem razão neste particular: o jornalista Raposo Antunes, responsável pelo texto em causa, admite que errou ao divulgar números relativos a certos
consulados (Berlim, Frankfurt, Hamburgo) numa altura em que os dados, afinal, ainda não estavam escrutinados - ao contrário do que sucedia noutras cidades europeias, e daí a confusão.

Voltando à questão de fundo, que diz sobre ela o director do PÚBLICO, José Manuel Fernandes? Isto: "Por mais interpretações que possamos fazer sobre o facto, a notícia da noite das eleições foi a abstenção. Era essa a incógnita. Sampaio venceu, mas sobre isso não havia muitas dúvidas. Agora, quase 50 por cento de abstenção numas presidenciais...".

Sobre os diversos títulos da edição, entende o director que eles "davam o tom do que se passou", além de serem "factualmente verdadeiros". Recordando que a abstenção foi também "o grande tema de debate das televisões", acrescenta: "Não me parece que reconhecer o que realmente se passou domingo à noite e reflectir sobre isso corresponda a qualquer desmerecimento de Sampaio".

De resto, José Manuel Fernandes diz não se lembrar de "uma noite eleitoral tão cinzentona, tão sem entusiasmo, tão sem chama", como esta, no que terá a sua razão.

Um dado parece incontornável: a notícia "grande" da noite foi mesmo a elevadíssima taxa de abstenção. Tudo o resto foram notícias "pequenas", porque já esperadas e de consensual interpretação. Sabia-se quase com certeza absoluta quem ia ganhar e quem ia ficar em segundo, havendo apenas algum "suspense" sobre a distância entre os dois candidatos. E viu-se como até essa distância não pareceu especialmente motivadora de grandes análises ou especulações. Quanto aos demais candidatos, obtiveram percentagens próximas das que seria lógico prognosticar.

Poderá argumentar-se que também toda a gente já previa uma elevada taxa de abstenção, pelo que não houve inteira surpresa. É verdade. Mas talvez não se imaginasse cifra tão alta - e, sobretudo, com aquele toque meio mágico que sempre tem um número redondo, os 50 por cento (ou quase...), com a consequente facilidade em falar de "metade dos eleitores". É uma ideia forte, concita atenções, suscita debate e reclama reflexão aprofundada (como, muito bem, tentou fazer o PÚBLICO nos dias seguintes). Mesmo sabendo, como se sabe, que há factores conjunturais a ajudar à explicação deste pico abstencionista.

É possível que o PÚBLICO tenha exagerado o seu bocadito ao repisar tanto, e em tantos textos, esta tecla. Ao dizer (disse-o em editorial) que não tencionava desvalorizar a abstenção, "como fizeram algumas candidaturas", correu o risco de a hipervalorizar - como fizeram outras candidaturas. Pode, contudo, aceitar-se que os responsáveis editoriais optaram por uma interpretação global do acto eleitoral, e fizeram-no com inegável justificação jornalística: dar prioridade ao que era mais notícia, ao que ressaltava da análise dos diversos comentadores, ao que semeava interrogações na opinião pública.

Não se esqueça, por outro lado, que, quando saiu na manhã de segunda-feira, o jornal não ia já dar novidade nenhuma sobre quem ganhara e quem perdera, e por quantos - isso tinha sido mais que dado, durante a noite, por rádios e televisões. Como compete cada vez mais à imprensa escrita, havia que tentar ir um pouco para além do óbvio ou do conhecido, e para além da mera celebração de uma vitória (para mais anunciada...), acrescentando valor informativo ao que se ouvira na véspera.

Portanto, se algum excesso houve, terá sido mais de tom do que de fundo.

Mudando de assunto: agradece-se a chamada de atenção do leitor António Tavares Teles para um erro de tradução do PÚBLICO que tem a sua relevância.

Na edição de quinta-feira, 18/01, escrevia-se na página 3, num texto traduzido do jornal francês "Libération" (sob o título "Não foi uma conjura"), a propósito de Laurent-Desiré Kabila: "Em 1996, o Ruanda e o Uganda descobriram o ex-guerrilheiro na Tanzânia, tendo alguma dificuldade em convencê-lo a abandonar a gestão de casas fechadas para liderar a rebelião contra Mobutu". Mas o que é isso de "casas fechadas" ("maisons closes", no original)? E o que é gerir tais casas? Alguém entende?...

O segredo está no dicionário: a expressão francesa "maison close" não pode traduzir-se à letra porque, de facto, significa "casa de prostituição". Assim já se percebe o que realmente geria Kabila - além de se ficar a conhecer melhor o perfil da personagem.

Cuidado, pois. Não é só a língua portuguesa que é muito traiçoeira!

Contactos do provedor do leitor:
Cartas: Rua João de Barros, 265 - 4150-414 PORTO
Telefones: 22-6151000; 21-7501075
Fax: 22-6151099; 21-7587138
E-mail: provedor@publico.pt