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Ninguém critica os Jornalistas?
Por JOAQUIM FIDALGO
Domingo, 14 de Janeiro de 2001

Será que o jornalismo português atravessa "uma profunda crise", traduzida em "falta de rigor e sensacionalismo", tanto mais preocupante quanto "a opinião pública, que se manifesta tão crítica perante todas as outras profissões, continua a poupar os jornalistas"?

Isto, e mais, disse (de acordo com uma notícia do "Diário de Notícias" de 9/1/2001) o secretário de Estado da Comunicação Social, Arons de Carvalho, num recente debate. Lembrando que ele próprio já leu notícias "completamente falsas" a seu respeito, o governante insistiu que "as pessoas não estão conscientes das falhas graves dos jornalistas, porque a verdade é que ninguém os critica quando merecem". E este "ninguém" abrange, em seu entender, até o Conselho Deontológico da classe, que, "numa atitude corporativista [se demitiu] da sua função".

Explicações, Arons de Carvalho encontra-as, por exemplo, no facto de os jornalistas "estarem a deixar-se condicionar à estratégia comercial das televisões" e na circunstância de mais de metade dos profissionais portugueses serem muito jovens (menos de 30 anos), o que estaria também "na origem de uma grande falta de respeito pela ética da profissão".

Tudo sopesado, o secretário de Estado percebe mal como é que este ofício continua a ocupar lugar cimeiríssimo no Barómetro DN, um indicador que mede a imagem e prestígio das profissões junto da opinião pública.

Solicitado pelo provedor a comentar este diagnóstico, o presidente do Conselho Deontológico dos jornalistas, Óscar Mascarenhas, mostrou-se menos pessimista. Desde logo, não estranha que os jornalistas apareçam bem cotados no "barómetro das profissões" porque, em sua opinião, esta profissão dá às pessoas razoáveis possibilidades de se defenderem e de se exprimirem: "Se alguém vai a um hospital e é maltratado, não pode escrever o seu protesto nas paredes e tem até muitas dificuldades em encontrar quem ouça a queixa; mas se alguém se sente visado por um jornalista, tem boas hipóteses de, no imediato, exercer o direito de resposta e fazer ouvir a sua voz".

A existência do direito de resposta, bem como de outros instrumentos que dão voz aos cidadãos (as cartas ao director, as colunas de opinião, os fóruns, os provedores...) permitem, segundo Óscar Mascarenhas, que as pessoas "se sintam mais tranquilizadas", até porque "vêem que a classe tem mostrado ser capaz de se autocriticar".

Sobre a predominância de jovens na profissão, o presidente do Conselho Deontológico invoca a sua experiência no cargo para contrariar Arons de Carvalho: "Na esmagadora maioria, as queixas que recebemos por procedimentos contra a deontologia referem-se a jornalistas nada jovens, e pelo contrário com muita experiência e boa situação laboral. Não há relação nenhuma entre baixos salários ou juventude na profissão e falta de ética...". Dada a sua frequente precaridade em termos de emprego, os jovens são até "especialmente cuidadosos", pois "sabem que, cometendo uma falha grave, arriscam-se a ficar sem trabalho". Isto sem esquecer que, nas mais das vezes, os jornalistas jovens estão a seguir orientações de jornalistas mais experientes e com outras responsabilidades (mesmo sem darem a cara ou o nome...) na formatação daquilo que se oferece ao público. E, mesmo não havendo directrizes explícitas, não é difícil chegar a um meio de comunicação e perceber "do que é que a casa gasta" - e gosta.

Pode não haver muitas, mas há algumas críticas aos jornalistas. Nem de propósito, os textos publicados por José Pacheco Pereira nas páginas deste jornal, nas duas últimas semanas, carrearam bom material de reflexão sobre o que (não) andam os jornalistas a fazer e, mais globalmente, sobre as ondas em que a Comunicação Social vem navegando - e, com ela, uma parte importante do nosso espaço público.

Voz tradicionalmente muito crítica destes meandros, nem sempre consensual mas nem por isso menos séria ou perspicaz, Pacheco Pereira põe o dedo, a propósito de dois assuntos diversos (o fenómeno "Big Brother" e a polémica do urânio empobrecido), em algumas feridas importantes:

· o facto de a comunicação social portuguesa tratar com pouca exigência e profundidade a própria comunicação social, alegadamente por resistência corporativa dos jornalistas;

· o facto de não haver conhecimento de objecções ou recusas de jornalistas quando, por exemplo, são chamados a participar na transformação de telejornais em anúncios de um programa de entretenimento ou em acções de propaganda de certas candidaturas;

· o facto de hoje, no "frenesim" da actividade mediática, se dar tão pouca importância ao saber, ao conhecimento, à ciência, conferindo estatuto idêntico às declarações de um especialista e às "impressões" de um cidadão comum;

· o facto de os jornalistas, mesmo pouco sabedores, gostarem de falar "mais alto e com mais certezas" do que os interlocutores que procuram, reagindo com incómodo ou com desinteresse quando não conseguem deles afirmações bombásticas - as tais que dão um título "forte".

Da sua experiência profissional e dos contactos que mantém no meio, pode o provedor assegurar que observações como estas são feitas também por não poucos jornalistas da nossa praça, seja em conversa informal na redacção, seja à mesa do café, seja em reuniões sindicais ou afins. Nem todos as subscrevem, certamente: aliás, seria interessante perceber a fundo que factores de coesão e de identidade profissional (o que é um jornalista?, qual o seu papel na sociedade?, que responsabilidades tem, como as deve assumir e a quem deve prestar contas?) são, nos dias que correm, partilhados genuinamente pelo conjunto da classe. Mas os que delas têm consciência crítica dificilmente vão além do desabafo pessoal e privado - o que dá alguma razão a Arons de Carvalho -, quando não deixam crescer uma desmotivação que leva ao alheamento ou à confissão de impotência perante a "lógica do sistema".

O "sistema" existe, é verdade, e tem a sua lógica: lógica de mercado, lógica de audiências, lógica do sucesso rápido, lógica do efeito fácil. A lógica vertiginosa de quem apanha a "espuma" das coisas e, sem tempo ou vontade de se questionar muito, logo parte para outra "espuma". A lógica do entretenimento, afinal tão decorrente do efémero (uma lógica de informação preocupa-se mais com o permanente que se oculta sob o efémero).

O problema é que, se calhar, parte desta lógica nunca se desligará de uma comunicação social de massas - logo, será vão esperar dela, ou pedir-lhe, o que ela não pode dar...

Mas só parte. E nem todos os órgãos de comunicação social veneram o "sistema" de modo igual. Por outro lado, há as pessoas concretas, os jornalistas, que, apesar do "sistema", têm algum espaço de autonomia e liberdade - ou é bom que o encontrem, sob pena de não cumprirem as suas obrigações e defraudarem a confiança do público.

Como lembrava Arons de Carvalho (e, aqui, Óscar Mascarenhas está de acordo), os jornalistas "nunca tiveram tantos direitos" individuais e colectivos como hoje, vendo razoavelmente protegida a missão que a sociedade lhes confere. Ora, se têm direitos especiais, considerados necessários para um trabalho independente e livre na informação, não é curial que facilitem nos correlativos deveres. Desde logo os éticos e deontológicos. Entre eles, o dizer "não" quando se lhes pede que façam o que não está certo ou o que não serve o interesse público, mas apenas interesses particulares ou propósitos sensacionalistas.

O "sistema", por vezes, também tem as costas muito largas...

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