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Em Casa de Ferreiro...
Por JOAQUIM FIDALGO
Domingo, 7 de Janeiro de 2001

Os leitores deste jornal terão ficado a saber, a partir de uma notícia publicada na edição do passado dia 29/12, que (e cito o título) "PÚBLICO ultrapassa 'Diário de Notícias'".

Logo no dia seguinte, 30/12, os leitores do "Diário de Notícias" terão ficado a saber, a partir de uma notícia semelhante publicada naquele jornal, que (e cito o título) "DN vende mais 15 mil que o PÚBLICO".

Apetece perguntar, como já noutra circunstância aqui se fez: em que ficamos, afinal?... É o PÚBLICO que vende mais que o DN, ou o DN que vende mais que o PÚBLICO? Quem fala verdade?

Não é que a dúvida, em si, seja especialmente palpitante. Vende mais um, vende mais outro, escasso mal daí virá ao mundo. Porém, o caso serve para, de novo, reflectirmos sobre certos processos de feitura das notícias - e, mais do que isso, para vermos como também os "media", quando estão directamente em causa, nem sempre seguem com rigor e com escrúpulo os critérios de isenção jornalística que pregam. "Em casa de ferreiro, espeto de pau"...

Ao contrário do que sucede co m as audiências televisiva, não é fácil conhecer, em tempo útil, os índices de circulação dos jornais portugueses. Eles próprios são obrigados a dar conta pública das suas tiragens, indicando normalmente as quantidades médias do mês anterior. No entanto, estes números nem sempre são fiáveis, o que se lamenta. Por outro lado, não podemos confundir tiragens com vendas reais: um jornal pode tirar por dia os exemplares que quiser, mas isso não significa que os venda todos, ou sequer a maior parte.

No caso da imprensa portuguesa, a percentagem de sobras ( exemplares que foram impressos mas acabaram por ser devolvidos ao fornecedor) oscila, por regra, entre os 20 e os 35 por cento - havendo casos onde os valores são ainda mais elevados.... Quer isto dizer que um título pode anunciar tiragens de 50 mil exemplares/dia mas estar a vender, de facto, 30 mil ou 40 mil, o que faz a sua diferença.

Por tudo isto é que, quando se pretende medir a real penetração de um jornal, se fala não em "tiragem" mas em "circulação" - sendo esta o somatório das vendas em banca, das vendas por assinatura e das ofertas. Ou seja, a tiragem menos as sobras. E há mesmo quem prefira falar mais restritamente em "circulação paga", subtraindo ao volume global os jornais oferecidos.

Há, em Portugal, um organismo que recolhe, audita e divulga os dados relativos tanto à tiragem como à circulação de jornais e revistas: a Associação Portuguesa para o Controlo de Tiragens (APCT). Ele próprio sofre também de dois problemas complicados: não é de inscrição obrigatória (apesar de congregar a quase totalidade dos títulos importantes, com a conhecida excepção de "A Bola"), e difunde os números com um diferimento no tempo de, pelo menos, três meses.

Quer isto dizer que só agora foram conhecidos os dados relativos ao terceiro trimestre de 2000 - o período de Julho a Setembro. Foram, aliás, esses dados que deram origem às duas notícias inicialmente referidas, a do PÚBLICO e a do DN.

Dada esta distância temporal, a que acresce uma razoável sazonalidade no consumo de jornais - potenciada pelas oscilações decorrentes da publicação de coleccionáveis e afins -, abre-se caminho a diversos cepticismos. Quem vê, hoje, bons números no mapa do terceiro trimestre de 2000, esfrega as mãos de contente e conta a novidade aos quatro ventos; quem, pelo contrário, vê nesse período uns números menos interessantes, diz que Setembro já vai longe e desde então recuperou imenso... Mas só daqui a três meses poderemos tirar a prova. E quem se vai lembrar?...

Sabe-se como as estatísticas, bem trabalhadas, dão para quase tudo. Veja-se o exemplo que aqui nos ocupa. Os dados da APCT agora conhecidos reportam-se ao terceiro trimestre de 2000 mas, tal como sempre acontece, aquele organismo divulgou-os em acumulação com os dos dois primeiros trimestres. Ficámos, portanto, a saber os níveis de circulação dos jornais no trimestre Julho-Agosto-Setembro, mas também os valores acumulados desde Janeiro.

E foi aqui, nesta distinção, que PÚBLICO e DN encontraram títulos tão diferentes para noticiar, aparentemente, a mesma matéria.

O PÚBLICO centrou a atenção na média de circulação no terceiro trimestre de 2000, justificando assim a afirmação de que ultrapassara o título concorrente: naquele período, obteve uma circulação média diária de 58.905 exemplares, enquanto o DN se ficou pelos 56.242. E como isso correspondeu à inversão da tendência dos dois trimestres anteriores, "puxou" pela novidade.

O DN, em contrapartida, preferiu olhar para a circulação acumulada desde o princípio do ano, e não especificamente para o terceiro trimestre, cujos dados lhe eram desfavoráveis. Assim, invocando igualmente os números da APCT, escreveu que, no período de Janeiro a Setembro, atingiu uma média de circulação paga de 68.443 exemplares, enquanto o PÚBLICO se ficou pelos 53.224. Os tais 15 mil a mais.

Ambos falaram, uma vez mais, verdade. Uma vez mais também, ambos falaram só uma parte da verdade: cada um falou a parte que mais lhe interessava, cada um escolheu a fatia de estatística mais saborosa.

Mesmo podendo parecer suspeito, considero que a notícia do PÚBLICO foi, neste caso, mais correcta que a do DN. O que era novo eram os números da APCT para o terceiro trimestre: os outros já tinham sido divulgados. Era a informação mais recente. Passar por cima dela, indo buscar refúgio na vantagem acumulada em meses anteriores, aparenta-se a um desviar de atenções (semelhante ao que faz a SIC na sua guerra de audiências com a TVI, invocando "shares" mensais para atenuar o peso das derrotas diárias que tem sofrido no "horário nobre"). É possível fazê-lo, é tudo escudado em números, mas soa a mau perder.

Desta feita, o PÚBLICO não merece crítica pela notícia que fez. Mas, noutras alturas em que as novidades eram menos radiosas, também ficou caladinho ou "puxou a brasa à sua sardinha"... Nesse aspecto, sejamos claros, não há jornal sem culpas no cartório.

Pautando-nos por critérios jornalísticos - pois estamos a falar de notícias, não de auto-promoções -, devemos noticiar os factos quando eles nos são favoráveis e quando nos são desfavoráveis. É isso que qualquer jornal de referência prega e defende para a sua actividade, não é? Ora, no que respeita aos dados da APCT, é curioso reparar que, sempre que sai uma nova informação, quem pega logo nela é o jornal que está em melhor situação; ao invés, se os números não são agradáveis, o mesmo jornal opta pelo silêncio e desvaloriza a informação.

Se se considera relevante, para os leitores, dar a conhecer os níveis de circulação da imprensa, faça-se notícia sempre que haja novos dados. E notícia o mais completa possível, rigorosa, independente da "causa própria".

Se se quiser fazer publicidade ou propaganda, tudo bem também: mas não nos espaços informativos, não com os códigos jornalísticos. Se esta "separação de águas" é defendida em relação a todas as empresas, deve sê-lo também em relação á própria empresa. Por uma questão de princípio.

É preocupante ver como, com a cumplicidade activa de jornalistas (aparentemente esquecidos do compromisso deontológico que lhes veda o exercício da publicidade), certos órgãos de comunicação social utilizam os espaços de informação para promover os seus próprios produtos ou programas, disfarçando-os desajeitadamente de notícias. Então fazer publicidade "à casa" já não é fazer publicidade?.... O princípio só vale para "os outros"?...

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