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Contra Factos Não Há Argumentos?
Por JOAQUIM FIDALGO
Domingo, 17 de Dezembro de 2000

Podia começar por Figo, podia começar pela co-incineração: a semana que
ora finda forneceu-nos dois interessantíssimos exemplos de como a Comunicação Social não é propriamente um espelho anódino e neutro da
realidade; pelo contrário, ao debruçar-se sobre ela para a noticiar,
interpreta-a e relê-a. O que vemos nos jornais não é a realidade - é uma
representação da realidade, construída com os instrumentos e os códigos
próprios do trabalho jornalístico. Daí que não baste muitas vezes relatar os
factos com verdade, para obter uma informação completa e rigorosa. É
preciso procurar a verdade que frequentemente se esconde por detrás dos
factos. Ou "as verdades" - assim, no plural...

Tomemos o caso da co-incineração.

Este "dossier" polémico voltou, na terça-feira, às primeiras páginas dos
jornais. E voltou de maneira peculiar: algum dos leitores imaginaria, ao ler os
títulos de dois respeitáveis jornais diários sobre o assunto, que eles tinham
sido feitos exactamente a partir dos mesmos materiais informativos?... Mas
foi isso que sucedeu.

Dos relatos saídos na imprensa, ficámos a saber que, na segunda-feira, foram divulgadas as conclusões de um grupo médico encarregado pela Comissão Científica Independente de analisar os eventuais riscos da co-incineração para a saúde pública. Todos os jornais tiveram acesso aos mesmos elementos informativos, e só a esses: uns breves quatro parágrafos (integrados num relatório bastante mais completo, ainda não divulgado) com o parecer dos referidos médicos.

E que aconteceu no dia seguinte? O "Diário de Notícias", a partir das
informações transmitidas pela comissão, fez uma manchete dizendo
"Co-incineração avança para Souselas e Outão"; o PÚBLICO, a partir das
mesmas informações, puxou para a primeira página o título "Co-incineração
exige mais estudos". Nas páginas interiores, o flagrante contraste de
interpretações era ainda mais eloquente, com o "Diário de Notícias" a afirmar "Médicos aprovam co-incineração" e o PÚBLICO a contrapor "Médicos querem mais estudos".

Em que ficamos?... Quem é que fala verdade?...

Títulos diferentes sobre os mesmos assuntos são, nos jornais, "o pão nosso
de cada dia". Mas têm uma razão: o trabalho prévio de pesquisa e recolha de informação é habitualmente diferente e, portanto, é normal que se chegue a conclusões nem sempre coincidentes. Se a matéria informativa em que se
baseia o título difere, nada mais natural que difiram os títulos.

A questão curiosa é que, no caso em apreço, a matéria informativa de base
parece ser rigorosamente a mesma. Ambos os jornais parecem ter tido
acesso ao tal texto do grupo de médicos, e não mais. Ora, foi exactamente a
partir desse mesmo texto que o "Diário de Notícias" se sentiu seguro para
afirmar que os médicos davam "luz verde" à co-incineração e, ao contrário, o PÚBLICO entendeu dizer que os médicos exigiam mais estudos para o
processo avançar.

Em boa verdade, ambos os pontos de vista estão contidos no dito parecer.

De facto, a conclusão dos médicos diz (e cito do "Diário de Notícias") que,
"ao nível actual dos conhecimentos, a co-incineração, em condições óptimas, não prejudica a saúde humana" e que "devidamente monitorizado é um processo revertível, logo que detectadas anomalias".

De facto, a conclusão dos médicos diz (e agora cito do PÚBLICO) que é
dado um parecer positivo à co-incineração desde que seja feita uma "prévia
caracterização detalhada das condições ambientais e populacionais de cada
local em causa, e das posteriores monitorização ambiental e vigilância
epidemiológica".

Quanto a factos, portanto, estamos conversados. Eles sustentam
razoavelmente uma e outra interpretação. Quando pedimos um parecer e nos respondem "sim, mas...", tanto podemos fixar-nos alegremente no "sim" como preocupar-nos cepticamente com o "mas...". Se temos interesse no assunto, arriscamo-nos a escolher o que nos dá mais jeito. Se não temos, decidimos  em função de uma postura mais optimista ou mais pessimista.

Para utilizar a expressão do jornalista do PÚBLICO que trabalhou o assunto, as conclusões do grupo médico são uma espécie de "luz verde" à
co-incineração mas com vários "sinais amarelos" pelo meio. Tudo isso está
contido nos textos das duas publicações. Mas, quanto a títulos, o que se
conclui é que o "Diário de Notícias" fez título SÓ com a "luz verde" e o
PÚBLICO fez título SÓ com os "sinais amarelos". Nenhum deles optou pelo
semáforo todo... É a velha história da garrafa com metade de água, que uns
dizem estar ainda meio cheia e outros dizem estar já meio vazia.

Quem fala verdade? Falam ambos. Ambos falam uma parte da verdade. Mas por que motivo não falam (nos títulos, insisto) a verdade toda? Aqui,
podemos imaginar justificações mais "técnicas" ou mais "políticas".

Um jornal militante, empenhado na defesa de causas ou preocupado mais em tomar partido do que em dar informação completa e independente, poderia ser tentado, numa circunstância como esta, a destacar só uma parte da verdade, escondendo a outra. Como o parecer do grupo médico é algo
ambíguo nas suas conclusões, nem era preciso "torcer" demasiado as
palavras para puxar a coisa para um lado ou outro. Não obstante, um e outro jornal acabam por dar uma informação bastante correcta nos seus textos. Só os títulos são demasiado redutores - o que nos leva às explicações "técnicas".

Como aqui se tem dito, os títulos são uma arma perigosa e de arriscado
manejo. Têm que ser (e então os de primeira página...) curtos, concisos,
claros, e cada vez mais os jornais os querem fortes, apelativos, tudo menos
"cinzentos". O problema é quando a realidade a reportar é, ela própria,
complexa, múltipla, nada traduzível num simples "preto ou branco" mas cheia
de tons de cinzento...

As conclusões dos médicos quanto à co-incineração eram, em alguma
medida, "cinzentas": não afirmavam categoricamente que sim ou que não,
ficavam-se pelo tal "sim, mas...". Nesse caso, seria muito difícil fazer um título correcto e fiel se não se traduzisse aí essa própria ambiguidade. Mas foi, salvo melhor opinião, o que fizeram os dois jornais. E julgue quem quiser: é preferível fazer um título "cinzento" mas fiel à ideia que se deseja transmitir, ou um título "afirmativo" mas que omite uma parte essencial dessa ideia?

Resta a sensibilidade própria dos responsáveis editoriais e a sua interpretação dos factos, quando se trata de fazer os títulos.

Neste caso, é evidente que o PÚBLICO se mostrou mais sensível à
circunstância de o parecer médico não ser inequivocamente conclusivo
quanto aos riscos da co-incineração. Os responsáveis do jornal
"agarraram-se" às reticências ainda apontadas pelos médicos e deram-lhes a
maior relevância informativa, decerto no pressuposto de que com isso
forneciam aos leitores a melhor leitura dos factos.

Ao invés, o "Diário de Notícias", com idêntica legitimidade, entendeu
sobrevalorizar o facto de os peritos, mesmo deixando no ar apelos a grandes cautelas com o processo, terem defendido que a co-incineração podia avançar. Aqui, quem fez o título foi mais sensível à tal "luz verde" - quiçá antecipando que seria essa, como foi, a interpretação mais generalizada e adoptada por quem decide.

Pode tudo isto ter sido feito, num caso e noutro, com genuíno propósito
informativo e sincera convicção de que se estava a destacar a faceta mais
importante do caso. Pode também (quem o saberá?...) ter havido alguma
intenção de "puxar a brasa" para uma leitura com que se simpatiza mais. Mas em ambos os casos havia parte de verdade - e era preciso ler as duas
interpretações (os dois títulos) para ler a verdade toda. Só que os leitores
habitualmente lêem apenas um jornal, não dois...

No caso de Figo, o que foi surpreendente foi que, na terça-feira, boa parte
dos jornais fez grandes e orgulhosos títulos com o facto de o jogador ter sido eleito "o segundo melhor do Mundo" em 2000. Nada mais factual. No
entanto, se falássemos com as pessoas e ouvíssemos as suas reacções
generalizadas, perceberíamos que não havia contentamento nenhum: todos
lamentavam o facto de Figo não ter sido "o primeiro", pois era isso que se
esperava.

Qual era a verdadeira notícia do dia?

Das duas uma: numa perspectiva mais distanciada e menos "nacionalista", a
notícia era que Zidane tinha sido o vencedor da corrida para "melhor
futebolista do Mundo" em 2000 (honra lhe seja, foi esta a opção do
PÚBLICO na primeira página); numa perspectiva mais virada para as
expectativas do leitor português, a notícia só podia ser que Figo não tinha
sido o primeiro. O próprio jogador mostrou o seu desapontamento, ao dizer
que, no caso, ser segundo ou ser último era a mesma coisa.

No plano estrito dos factos, é aceitável dizer "foi segundo" ou "não foi
primeiro". No entanto, se quiséssemos encontrar a verdade que se escondia
por trás dos factos, teríamos de dizer aquilo que, no dia, toda a gente queria
saber: Figo não fora o escolhido. Essa história do "segundo melhor", que
noutras circunstâncias até seria uma vitória, foi afinal uma derrota. Não é
verdade?...

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