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A Voz das Mulheres - Parte Dois
Por JOAQUIM FIDALGO
Domingo, 10 de Dezembro de 2000

"Só um homem se poderia interrogar sobre o porquê da 'ausência' de opiniões femininas, inclusive em assuntos que lhes dizem directamente respeito!"

"Espantou-me a sua ingénua interrogação sobre as causas da ausência das
mulheres nas páginas do seu jornal."

"Não posso aceitar que se circunscreva o discurso do dito 'feminino' a temas
supostamente 'femininos'."

"O facto de não mediatizarmos a nossa opinião não significa que aceitemos
passivamente as opiniões mediatizadas."

"Meu caro Joaquim Fidalgo, julgo que lhe seria necessário um Dicionário
para poder traduzir e transcrever o silêncio gritante das mulheres."

Como estas citações exemplificam, o texto aqui publicado há duas semanas,
sob o título "A vez e a voz das mulheres", suscitou variados comentários de
leitoras do PÚBLICO, mais ou menos concordantes, mas todos genuinamente interessados em contribuir para o duplo objectivo que nos
move: (1) aprofundar o debate sobre a persistente subalternização (pública e
privada) do estatuto das mulheres face ao dos homens e, através dele, (2)
ajudar a modificar este estado de coisas tão arreigadamente entranhado, mais ou menos conscientemente, nas nossas cabeças e nas nossas vidas.

Os comentários recebidos mostraram, contudo, que as minhas palavras nem
sempre foram bem entendidas, suscitando equívocos ou ambiguidades que
importa esclarecer.

Não foi, para mim, nenhum espanto constatar a generalizada ausência de
assinaturas femininas tanto nas "Cartas ao Director" como nos textos de
opinião do PÚBLICO (os únicos espaços, recordo, sobre que me debrucei). Os números e percentagens avançados pretenderam tão-só dar visibilidade mais concreta a uma situação bem conhecida de qualquer cidadão atento.

Muito menos pretendi, fosse de que modo fosse, "culpar" as mulheres por
esse maior silêncio no espaço público mediático, aparentando um cândido
desconhecimento das causas que o explicam. Pelo contrário, algumas dessas
prováveis causas foram referidas no texto, levando mesmo a reflexão mais
para além da (também apontada, e importantíssima) falta de tempo e de
disponibilidade das mulheres para este tipo de participação.

Diz uma leitora: "Como é que alguém que se sente (e, sobretudo, a quem
fazem sentir) responsável pelo bom funcionamento de uma casa, por um
homem adulto e por uma ou mais crianças, encontra tempo para ler e para se informar e tem capacidade de concentração ao fim de um dia de trabalho, de ter passado pelo 'super' para comprar uma coisa que faltava, de ter feito o jantar, de ter lavado a loiça, de ter tratado das crianças, etc., etc.? Mesmo
nos casos em que os homens, como é habitual dizer-se, 'ajudam' (repare-se
bem no verbo 'ajudar', que pressupõe um responsável - que, certamente, não é o 'ajudante'), cabe às mulheres a maior parte, bem como a gestão, do
trabalho caseiro".

Tem razão. E, como se não bastasse, o problema ainda é mais complicado:
mesmo nos casos em que as questões do tempo e da disponibilidade são
superados, subsistem entraves e rotinas de funcionamento (no plano
organizativo e no plano mental) que dificultam a entrada das mulheres num
espaço tipicamente masculino. Diz outra leitora: "Como 'opinion makers', as
mulheres não existem, não vão à televisão, nem à rádio, não são citadas nos
jornais. Trabalham, dizem coisas válidas, mas não existem". Até quando
partilham um projecto a meias com um homem: "Se tiverem como sócio um
homem (...), correm riscos enormes. Porque, passado pouco tempo, ele é já
o autor do projecto, o herói do sucesso, a única razão para a validade e
qualidade das coisas. Mesmo quando tudo é feito pelos dois em partes iguais. (...) Os convites para colaborações, entrevistas, idas à televisão, etc., são 90 por cento para ele."

E isto não sucede só quanto a publicar textos num jornal. Como comenta
mais uma leitora: "Mesmo nos casos em que as mulheres ocupam cargos de
chefia e recebem altos ordenados, elas continuam a ser as responsabilizadas
pela casa e pela família, só que pagam a alguém para fazer o trabalho.
Veja-se as mulheres que detêm cargos públicos: pergunta-se-lhes logo como é que elas têm tempo para os filhos e para a casa; nunca se pergunta a um homem uma coisa dessa natureza!".

Um outro equívoco foi provocado por um dos exemplos referidos no meu
texto - o da "pílula do dia seguinte". Ao contrário do que algumas pessoas
interpretaram, em nenhum momento se pretendeu limitar a participação
pública das mulheres aos tais temas "uterinos".

"Não posso aceitar que se circunscreva o discurso do dito 'feminino' a temas
supostamente 'femininos', ou muito menos que se delimitem perímetros, de
forma mais ou menos calculista, sobre o que pode ou não interessar às
mulheres", diz uma leitora, com toda a razão do mundo. E continua: "Se
calhar, o que as 40 por cento de mulheres que compram o PÚBLICO
regularmente desejam é que as não confinem a territórios mais ou menos
estereotipados e sobejamente explorados pelas inúmeras publicações
femininas e que lhes não seja negado o direito de lerem o que muito bem lhes aprouver".

É bem verdade, como refere outra opinião recebida, que vivemos numa
"sociedade patriarcal onde a existência social das mulheres é gino-centrada
ou sexo-centrada". E, concordando que não deve haver "assuntos de
mulheres", o certo é que "quando existem mulheres no assunto, este está
forçosamente ligado aos aspectos procriativo/sexual". Contra esta visão
redutora (mas na prática tão difundida) me pronunciei também, sugerindo
apenas que, se não há "assuntos femininos", haverá - e ainda bem - um ponto de vista "feminino", uma sensibilidade, um modo de ver e de dizer, que falta muito no discurso "masculino" da opinião mediatizada e que decerto nos enriqueceria. Mas um ponto de vista relativo a todos os assuntos.

Não obstante, choca ver como algumas questões que dizem muito
especificamente respeito às mulheres, ao seu direito pessoal de decisão e de
autonomia, vão sendo debatidas na praça pública apenas por homens - só
porque são os tradicionais donos dessa praça, e a partir dela fazem doutrina
pretensamente universal. Por isso se falou da "pílula do dia seguinte", como
exemplo marcante, mas também como motivo para falar de outras coisas. Ou seja, da excessiva masculinização do espaço público mediático e do
empobrecimento (além da injustiça) que tal pode significar.

"O facto de não mediatizarmos a nossa opinião não significa que aceitemos
passivamente as opiniões mediatizadas. Não significa também que nos
fiquemos por uma reacção privada a essas opiniões públicas. Movemo-nos
também em espaços públicos, embora não mediatizados, e aí discutimos e
reconstruímos as nossas opiniões e as nossas visões do mundo", comenta
mais uma leitora, corroborando afinal o que aqui se afirmou.

Não se pretende "obrigar" ninguém a escrever para os jornais e a publicitar
opiniões, nem "culpar" quem, mais ou menos voluntariamente, não o faz.
Conhecem-se bem as razões por que tão poucas mulheres escrevem ou por
que tão poucas são convidadas pelos jornais a escrever - mas não será mau
ir continuando a discuti-las, para ver se alguma coisa muda. O que se
pretende é que elas, querendo, tenham iguais possibilidades e oportunidades
de escrever e publicar, tanto por sua iniciativa como por solicitação de quem
manda nos jornais - e que em nenhum momento sejam, frontal ou subtilmente, discriminadas pelo facto de serem mulheres. Só isso - e tanto é!

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