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A Vez e a Voz das Mulheres
Por JOAQUIM FIDALGO
Domingo, 26 de Novembro de 2000

Na semana de 12 a 18 de Novembro, saíram no PÚBLICO vinte e seis
"Cartas ao Director" sobre os mais diversos assuntos; apenas três eram
assinadas por mulheres.

Na mesma semana, entre colunistas regulares e outros participantes, o jornal
deu à estampa, no seu "Espaço Público", vinte e um textos de opinião; todos, sem excepção, eram assinados por homens.

A rubrica "Diz-se", onde são reproduzidas frases em discurso directo
difundidas noutros órgãos de informação, apresentou, naquele mesmo
período, um total de sessenta e oito citações; sessenta delas provinham de
bocas (ou penas) masculinas.

Há um mês, gerou-se no PÚBLICO um pequeno debate sobre a "pílula do
dia seguinte" - cujas potenciais utilizadoras são as mulheres. O tema
interessa-lhes, decerto. Não obstante, das onze "Cartas ao Director" então
publicadas sobre a matéria, apenas duas tinham assinatura feminina. E, dos
oito textos de opinião alusivos ao tema (nos quais se incluiu uma polémica
entre José Manuel Fernandes e Eduardo Prado Coelho), nem um só escapou à presença avassaladora do sexo masculino no espaço público mediático.

Quererá isto dizer que os jornais - entre eles o PÚBLICO - são "dos
homens"? Estamos num terreno onde a participação, espontânea (caso das
cartas) ou solicitada (caso dos colunistas), é tipicamente, estruturalmente,
fatalmente, masculina? E é por isso que as opiniões das mulheres aparecem
tão pouco por aqui, mesmo havendo espaços abertos a todo/a e qualquer
um/a que queira escrever? E... está bem assim. aceita-se como "normal", ou
devia trabalhar-se para que fosse diferente?

Embora os exemplos aqui coligidos não tenham preocupações de rigor
matemático, todos sabemos que eles não são mera coincidência ou fruto de
circunstâncias particulares.

Como confirmou ao provedor o actual responsável pela gestão da área de
"opinião e cartas", José Queirós, as cartas dirigidas ao PÚBLICO e
assinadas por mulheres andaram "entre 12 e 13 por cento do total no mês de Outubro" e não ultrapassam "10 por cento no que vai de Novembro". No domínio dos textos de opinião não solicitados pelo jornal, mas fruto da
iniciativa espontânea de leitores, "o panorama ainda é pior": desde o início de Outubro, diz José Queirós, foi publicada "uma única opinião feminina, e ainda por cima colectiva". Mas terão sido recebidas muitas outras que não
mereceram publicação? Não; apenas mais uma. Tudo o resto, publicado ou
não, veio de homens. Coisa semelhante se passou, aliás, com as cartas sobre a "pílula do dia seguinte": as duas publicadas e assinadas por mulheres foram as únicas recebidas de mulheres.

Esta situação "preocupa" o director do PÚBLICO. "Temos procurado
contrariar isso de formas diferentes e, em Março passado, encontrámos
mesmo forma de ter um texto de uma mulher todos os dias", comenta José
Manuel Fernandes, acrescentando: "Mesmo assim, nalgumas polémicas
desde então desencadeadas nas nossas páginas, tenho ideia de que aparecem logo mais homens a escrever".

A Direcção tem responsabilidade em parte desta questão. Se não pode
escolher quem escreve cartas ou propõe textos de opinião, escolhe as
pessoas a quem pede participações específicas sobre certo assunto - e
escolhe os colunistas permanentes. Hoje, no PÚBLICO, são todos homens.
José Manuel Fernandes diz ter empenho em voltar a contar com presenças
femininas nesta área, tal como já sucedeu. E promete novidades.

Um dado curioso importa reter: de acordo com as últimas sondagens, a
percentagem de leitores regulares do PÚBLICO divide-se em cerca de 60
por cento para o sexo masculino e 40 por cento para o sexo feminino. Ou
seja, a ausência de mulheres nos espaços de participação do jornal não
significa, necessariamente, desinteresse ou alheamento da informação
veiculada pelo jornal.

Os porquês desta tão óbvia "masculinização" do espaço público mediático
serão múltiplos e complexos, não cabendo aqui dissecá-los em pormenor.
Com a ajuda da professora Helena Araújo - docente da Faculdade de
Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, e
conceituada estudiosa destes assuntos -, lancemos, entretanto, pistas para a
conversa.

Sublinhando a grande complexidade da questão - "pesam nela muitíssimos
factores históricos, culturais, sociais..." -, Helena Araújo recorda que "para
participar é preciso, desde logo, ter tempo disponível, e isso é algo em que
existe de modo muito diferente para homens e mulheres". Depois, " o simples acto de tomar a palavra sempre foi mais difícil para as mulheres, até porque a palavra, em si, também é poder".

Que o espaço público é, em termos "da sua própria concepção e
construção", um espaço "claramente masculino", impõe-se à evidência; os
próprios homens, diz Helena Araújo, "tendem a ver aí, como seus
interlocutores, outros homens, e a medir-se por eles". Quanto a serem
chamados mais homens a dar opinião nos jornais, isso dever-se-á em boa
parte ao facto de os responsáveis editoriais "procurarem quem tem um certo
tipo de mérito - mérito muito desenhado, ele mesmo, em termos masculinos".

Em suma, e muito telegraficamente, não só "não há grandes estímulos à
participação das mulheres, como também não há expectativas nesse sentido,
antes pelo contrário: não se espera, tradicionalmente, que as mulheres sejam
fazedoras de opinião...". O certo é que, na perspectiva desta investigadora,
uma maior presença do feminino nestes terrenos podia trazer a público
"outros temas e outras formas de dizer, de sentir, de estar" que
acrescentariam ao que temos hoje. E os "media", pelo papel que
desempenham na sociedade, talvez devessem "fazer alguma coisa" nesse
sentido.

Além das razões objectivas que sempre tornam mais difícil (ou, pelo menos,
sujeita a mais "ginástica", física e psicológica, no quotidiano...) a
disponibilidade das mulheres para entrar no espaço público mediático,
apetece perguntar até que ponto essa participação também é por elas
considerada importante. Pelo que ela significa de visibilidade, de afirmação
pública, de projecção e de exposição em terrenos mais ou menos impessoais, talvez seja sobretudo desejada numa lógica do "masculino", preferindo a do "feminino" exercer a sua acção e a sua influência noutros contextos de participação, mais próximos das pessoas, mais ligados à vida concreta, mais palpáveis, mais sensíveis.

O espaço público dos jornais não esgota, naturalmente, as nossas
possibilidades de participação e de debate colectivo, embora tenha hoje um
inegável impacto. Até por isso, e com o que algumas coisas das nossas
cabeças têm mudado, é um pouco desconfortável continuar a vê-lo tão
esmagadoramente ocupado pelos homens e tão tributário do "masculino".
Não será que a generalizada ausência das mulheres nestes domínios nos faz
perder a todos (homens e mulheres...), perspectivas, pontos de vista,
sensibilidades, com que só teríamos a lucrar? Uma maior participação das
mulheres - enquanto mulheres e não enquanto "clones" dos homens nesse
microcosmos já tão masculinizado - enriqueceria decerto o espaço público,
mesmo (ou sobretudo) à custa de o ir transformando.

Para terminar: ver um debate sobre a "pílula do dia seguinte" feito
exclusivamente por homens é estranho mas, mais que isso, arrisca-se a ser
pouco ou nada relevante em termos de criar opinião e de produzir
consequências. Quando chegue o momento, quem vai decidir sobre isso não
é quem debateu ou botou doutrina, mas quem se sente em causa: a mulher...

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