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Quem Faz a Agenda dos Jornais?
Por JOAQUIM FIDALGO
Domingo, 19 de Novembro de 2000

O provedor debruça-se quase sempre sobre problemas apresentados pelos
leitores quanto a matérias que saíram no jornal. Contudo, uma das mais
insistentes dúvidas que pessoas de diversíssimos quadrantes lhe vão fazendo
chegar, formal ou informalmente, refere-se a matérias que NÃO saíram no
jornal. Por que motivo se entrevistou Fulano e não Sicrano? Porque é que se cobriu este colóquio mas não aquele? A que propósito se considerou
relevante um comunicado do organismo A e se ignorou um do organismo B?
Com que critério se acompanhou uma iniciativa desta escola, mas não
daquela? Como é que a instituição X tem sempre saída na comunicação
social e a instituição Y se vê e deseja para chegar à fala com um jornalista?
Porque é que lemos tanto sobre umas empresas e tão pouco sobre outras?

Se pusermos a questão aos responsáveis editoriais, adivinhamos a resposta:
nunca se pode "ir a todas", fica sempre muita coisa por cobrir, há que
escolher em função de critérios mais gerais (actualidade, novidade,
proximidade, conflitualidade) ou mais específicos (características da
publicação, leitores-alvo, gestão de meios humanos), toda a selecção implica riscos de deficiente avaliação, etc. O que é verdade. Mas não será tudo.

O que é também verdade é que, por muito que isto se explique às pessoas,
ninguém lhes tira da cabeça outras ideias. Por exemplo: que ter um amigo
num jornal é meio caminho andado para ver saírem notícias sobre uma
iniciativa a que se está ligado; que contratar os serviços de um assessor de
imprensa, ou de uma empresa de comunicação como as tantas (e de tão
variados perfis) que por aí proliferam, ajuda a "abrir portas" para os "media"; que anunciar uma realização com algum ingrediente cénico ou picaresco, para não dizer "clownesco", toca em corda sensível do que hoje enforma muita informação e chama logo jornais, rádios, televisões.

Em suma, prevalece a ideia de que a uma pessoa "sem conhecimentos" não
basta empenhar-se na organização de algo socialmente relevante para poder
contar com a presença da comunicação social; é preciso, antes disso,
convencer os "media" (quando não quase pedir-lhes por favor...) da
importância do evento. E preparar "dossiers" apelativos, e falar a este e
àquele, e "meter cunhas", e escolher bem a data e hora, e convidar um
"cabeça de cartaz" com força mediática, mesmo que os cabeças de cartaz
sejam sempre os mesmos: pelos vistos, resulta...

Ou seja, é preciso fazer possíveis e impossíveis para conquistar uma boa
posição na grelha de partida da feroz competição que todos os dias os
jornais gerem, ao estabelecerem a célebre agenda: o reduzido número de
assuntos que serão objecto de acompanhamento noticioso e que, por essa
via, marcarão o debate público. E não é que os órgãos de comunicação vão
quase sempre quase todos aos mesmos eventos, e quase todos desvalorizam ou esquecem quase sempre também os mesmos?... Até parece que estão concertados - ou, então, que se regem todos por uma única, e mais ou menos invisível, lógica.

Quase apetece dizer que o ónus da prova está invertido. Então são as
pessoas que têm de provar aos jornais que aquilo que estão a preparar ou a
fazer é importante e merecedor de notícia? Não devia ser ao contrário? Uma das mais basilares competências profissionais que se esperam de um
jornalista não é, precisamente, que sejam capazes de "ler o mundo", de andar por aí com os olhos e ouvidos bem abertos, de saber o que se passa, de perceber os sinais que tocam a sociedade, tudo isso para decidirem o que é mais importante e nos informarem?

Ora, "ler o mundo" não é ficar sentado entre quatro paredes, passivamente à
espera do que caia na mesa, e "ler" apenas aquela parte de mundo que os
promotores dos eventos conseguem fazer chegar à redacção. Por muito que
o jornalista tenha a liberdade de escolha dos assuntos a tratar, nessa
circunstância ele só estará a fazer escolhas de entre um "menu"previamente
limitado: o das hipóteses que terceiros lhe enviaram e com as quais lhe
encheram a agenda.

Lemos um jornal diário, ouvimos um noticiário, vemos um telejornal, e
percebemos que boa parte das notícias não se tornou noticia por iniciativa do jornalista, mas por iniciativa das fontes de onde emana a informação. Foram estas que marcaram o dia: o ministro que decidiu fazer tal inauguração, o político que programou uma acção de campanha, o empresário que convocou uma conferência de imprensa, o sindicato que organizou uma manifestação, o presidente de câmara que convidou para uma visita às obras, o treinador que se propôs dar a entrevista há muito pedida... E a comunicação social lá "decidiu" ir fazer a cobertura. Ou seja, agendou os acontecimentos, mas, em boa verdade, quem resolveu inscrevê-los na agenda potencial dos "media" daquele dia foram os promotores dos ditos acontecimentos. As tais fontes - cada vez mais organizadas e profissionalizadas.

Dedicando-se aos assuntos "obrigatórios", o jornal ficou sem gente para
tratar de uma série de iniciativas interessantes, próprias, que tinha em carteira mas que, por "condicionalismos de agenda", adiou mais uma vez. E como quase todos os "media" fizeram mais ou menos os mesmos raciocínios, no dia seguinte lá veremos em todo o lado mais ou menos os mesmos assuntos... E não saímos disto?

Se os jornais (uns mais que outros, claro) acabam por abdicar da sua
autonomia na definição da agenda - situação com que, apesar de tudo, não
deviam conformar-se tanto -, ao menos que não abdiquem dela no
tratamento noticioso das matérias. De outro modo, andarão a reboque dos
acontecimentos, reduzindo-se a caixas de ressonância dos seus promotores
e, eventualmente, de interesses particulares que os movem.

Se amanhã, um político (ou um empresário, ou um desportista, ou um
autarca) decidir dar uma conferência de imprensa, é possível que o jornal não tenha grande margem de manobra para não ir lá. Pode ser importante, os leitores querem saber, todos os outros vão dar...

Mas ir lá não significa, necessariamente, transcrever apenas o que o tal
político (ou...) disse, e com isso considerar cumprida a missão de informar.
Se ele tem outros objectivos em jogo ao tomar aquela iniciativa, há que
percebê-los e contextá-los; se ele implica terceiros nas suas declarações, há
que ouvi-los também; se ele é parte de um conflito, há que explicá-lo e
atender à outra parte, mesmo que ela não convoque conferências de
imprensa. Não o fazendo, ficando-se pela reprodução automática do que
outros querem que ele reproduza, o jornalista demite-se de uma parte
essencial da sua função e das suas responsabilidades sociais - além de se
arriscar a, mais por omissão do que por acção, "fazer o jogo" de alguém. No fundo, a prestar um serviço ao promotor da iniciativa e não aos leitores.

É este, afinal, um tremendo desafio que se coloca aos jornalistas e que exige
uma sólida preparação profissional: a necessidade de entenderem bem o
mundo actual, assim como o terreno complexo da comunicação social e dos
múltiplos interesses que a atravessam, para não fazerem o papel de "idiotas
úteis" ou de meros joguetes, usados por quem já percebeu bem como o
sistema funciona e dele se aproveita. Muitas vezes, nem é preciso um
jornalista ser mal intencionado para ser parcial; "basta" ser ingénuo, distraído, pouco exigente (logo, pouco competente) em termos profissionais.

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