As Linhas...
e as Entrelinhas
Por JOAQUIM FIDALGO
Domingo, 5 de Novembro de
2000 Pelos vistos, nem tudo foram excessos na
espantosa cobertura mediática das eleições no Benfica. Com perdão para a ironia, quase
apetecia dizer que sabe bem encontrar uma falha por defeito num processo onde tudo foi
excessivo: o espaço ocupado em jornais, rádios e televisões, a importância dada ao
caso, o baixo nível dos debates e polémicas, as "colagens" a uma ou outra das
partes em confronto, a mistura daquilo que, em informação, não deve ser misturado,
enfim, a pura desmedida num crescendo de dramatismo artificial que até assusta.
Ironia à parte, é facto que o leitor Artur Abreu se sentiu desiludido quando,
ao comprar o PÚBLICO na manhã seguinte ao escrutínio, não viu lá notícia
de quem era o novo presidente do Benfica. E argumenta: "O interesse do
assunto parece-me óbvio, quer pelo facto de ser a instituição portuguesa que consegue
mobilizar maior número de sócios na altura das suas eleições, quer pelas inúmeras
páginas e horas que lhe foram dedicadas nas últimas semanas pelos jornais e televisões
nacionais. Só na noite de ontem [sexta-feira, 27/10], cada um dos três canais
televisivos deve ter dedicado ao tema mais de quatro horas".
Pois é, excesso puxa excesso. Se os "media" dão muita importância ao caso
e ocupam com ele quilómetros de prosa ou imagem, é porque o caso tem (ou passa a
ter?...) muita importância. E se tem (ou passou a ter?...) muita
importância, é preciso continuar a dar-lhe, em mais quilómetros de prosa ou
imagem, a enorme importância que, aparentemente, ganhou. E assim por
diante. É o tal círculo vicioso e a dúvida pertinentíssima sobre se a relevância
dos assuntos se mede pela quantidade de espaço que ocupam nos "media" ou se, ao
invés, é a quantidade de espaço ocupado nos "media" que, afinal, os
transforma em assuntos relevantes. Satisfazer uma necessidade real ou criar a necessidade
para, depois, continuar a alimentá-la?...
Adiante. A verdade é que o PÚBLICO não deu, naquela manhã, o resultado das eleições.
O leitor Artur Abreu, na sua reclamação ao provedor, já adivinhava a causa dessa
omissão: não se tratara de desvalorizar a informação em causa, mas, muito
simplesmente, de os resultados (ou até as projecções não oficiais) terem sido
conhecidos a horas tardias para a impressão do jornal. É o que explica o director José
Manuel Fernandes: "O PÚBLICO está há algum tempo a ser impresso, em Lisboa, numa
rotativa diferente da habitual, partilhando-a com outro matutino - por sinal, desportivo.
Assim, temos que iniciar a impressão às 23h30, pois, de outro modo, arriscamo-nos a só
poder imprimir o jornal a seguir ao outro título, ou seja, depois das seis horas da
manhã, não chegando em tempo útil à generalidade das bancas. Como as próprias
projecções sobre quem seria o novo presidente do Benfica só eram divulgadas à
meia-noite, e podiam não ser conclusivas, optámos por não esperar".
Significa isto que o PÚBLICO está, como diz Artur Abreu, em posição de
desvantagem tecnológica face aos seus concorrentes? Pois parece que sim.
Resta esperar que o regresso à anterior rotativa permita maior flexibilidade
quando seja necessário atrasar um pouco o fecho para dar notícias de última
hora.
Esclarecida esta falha "por defeito", atentemos um pouco nos pecados "por
excesso" que a campanha eleitoral do Benfica tão copiosamente espalhou na
nossa paisagem mediática, escrita e audiovisual.
Primeiro, a questão da quantidade.
Não é questão menor a do espaço e importância conferidos pela
comunicação social a certos assuntos, em detrimento de outros. Face à
multiplicidade e complexidade do que hoje acontece no mundo e no país, a
nossa necessidade de informação é, em boa parte, uma necessidade de
interpretação dos acontecimentos, da sua hierarquização, da sua valorização
relativa. Esperamos que os "media" nos digam o que se passa, e como se
passa, e por que se passa, mas esperamos igualmente que, no dizer-nos isso
do modo selectivo como obrigatoriamente fazem, nos sugiram o que é
merecedor de maior atenção. Ora quando os grandes espaços noticiosos
(particularmente os televisivos) marcam a agenda dos debates e preocupações públicas
com uma tão obsessiva cobertura de certos temas -
sejam eles as eleições no Benfica, o "Big Brother" ou um picaresco "fait
divers" -, estão a "dizer-nos" que é isso que mais interessa seguir.
Logo, que
muitos outros temas teoricamente importantes podem ficar para segundo ou
terceiro plano - na nossa atenção, na nossa reflexão, na nossa vontade de
saber, na nossa conversa com os amigos, no nosso exercício diário de
cidadania.
Nem sempre isto acontece por acaso ou por exclusiva força de uma "lógica
de audiências", de que o sistema mediático se vê tão tributário. Pode haver
motivações bem mais específicas. O que, a propósito das eleições no
Benfica, nos leva à questão da qualidade da informação produzida.
A novidade marcante, pelas proporções que tomou, foi a aparente intrusão,
no universo da informação, de interesses económicos e empresariais alheios à esfera
editorial. Quando há cruzamento de negócios entre as empresas que
dominam canais de televisão e as empresas que gerem clubes desportivos, e
quando se vê depois que a cobertura noticiosa feita por esses canais se
inclina, com parcialidade, para um dos campos em confronto, é difícil falar em meras
coincidências. A própria autonomia do campo jornalístico (já de si tão frágil) fica
irremediavelmente comprometida, deixando nos espectadores a legítima dúvida sobre se
esta notícia, aquele comentário, aqueloutra
reportagem nasceram de critérios genuinamente informativos ou, pelo
contrário, da vontade de prestar serviço a outros interesses e de facilitar
outros negócios. Sejam eles de publicidade, de transmissão de jogos ou de
futuros investimentos.
O grave é que, com isto, as empresas jornalísticas desbaratam o seu capital
mais precioso - que não é dinheiro, mas credibilidade. E, a médio prazo, é
duvidoso que mesmo numa lógica empresarial estas estratégias sejam
rentáveis. Como podemos confiar num órgão de informação que se habitua a contar-nos
só metade das histórias porque a outra metade talvez não agrade aos restantes negócios
do seu patrão? Não é preciso ir muito longe na nossa história para encontrar exemplos
de jornais que se meteram por caminhos menos de informação independente e mais de
propaganda, ou militância, ou luta de facção, ou comércio de notícias (sim, que
também há quem as compre e venda...), e com isso cavaram a sua sepultura.
Claro que agora, feitas as eleições no Benfica, todo o responsável vem dizer
que foi muito imparcial, muito distanciado, muito isento. Mas por que será
que ninguém acredita?...
Os leitores e os espectadores podem não perceber sempre tudo, mas está
bem enganado quem os toma por parvos. Eles vão percebendo cada vez
melhor as mil e uma maneiras de manipular a informação, mesmo quando as
notícias em si, individualmente consideradas, até parecem neutrais: o maior ou menor
espaço que se lhes dá, a posição relativa que têm nos alinhamentos do jornal
televisivo, a paginação em local mais nobre ou mais pobre, os títulos de primeira
página, o jogo de certas imagens, o modo como se usam uns dados estatísticos e se
esquecem outros, a escolha dos comentadores, tudo isso ajuda a configurar a informação
global que chega aos receptores. A que se lê nas linhas - e a que se vê nas entrelinhas.
É só olhar com olhos abertos...
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