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Numa Palavra: Dignidade
Por JOAQUIM FIDALGO
Domingo, 29 de Outubro de 2000

A questão do momento não é tanto a violação do espaço privado de figuras
públicas, mas a devassa da privacidade dos chamados "cidadãos anónimos",
com o objectivo de se tornarem eles próprios figuras públicas. E uma devassa autorizada, consentida, desejada até.

A questão não é nova mas ganhou, nos últimos tempos, uma acuidade
particular: a propósito do "Big Brother" e do tanto que se tem dito e escrito
sobre ele, reavivou-se o debate sobre as relações entre os media (elemento
central do nosso espaço público) e a privacidade a que têm direito todos os
cidadãos.

A questão não é nova mas, em boa verdade, tem vindo a impor-se-nos sob
um novo enfoque. Habitualmente, falar do tema era questionar o maior ou
menor direito dos media a invadirem o espaço privado das figuras públicas, e chamar a atenção para o melindre ético ou legal dessas intromissões, bem
como para os prejuízos que elas frequentemente causam aos visados.

Não é que o assunto, colocado nestes termos, tenha caído em desuso ou seja menos pertinente - longe disso! Porém, o que temos hoje cruamente em cima da mesa é outro tipo de devassa da privacidade de outro tipo de cidadãos. Como Laborinho Lúcio sintetizava na semana passada, num colóquio promovido no Porto pela Alta Autoridade para a Comunicação Social, a questão do momento não é tanto a violação do espaço privado de figuras públicas, mas a devassa da privacidade dos chamados "cidadãos anónimos", com o objectivo de se tornarem eles próprios figuras públicas. E uma devassa autorizada, consentida, desejada até. Sendo que ao propósito de conquistar notoriedade se acrescenta, por regra, o aliciante de um prémio monetário (conseguido também à custa da denúncia, exclusão ou "extermínio" de outros contendores, num ápice transformados de companheiros em adversários).

Embora o "Big Brother" tenha levado este assunto a extremos mal
imagináveis, convém notar que não é exemplo ímpar ou de geração
espontânea. "O programa segue a lógica televisiva existente", diz Júlio
Machado Vaz (Jornal de Notícias - 22/10/00), explicitando: "Nos últimos
anos vi confessar ódios e amores, rastejar por perdão, expor-se ao ridículo e à crueldade, perder fortunas sob o olhar deliciado de milhões de
portugueses". Ou seja, o programa é "apenas mais um degrau de uma escada que começámos a descer há muito".

Trata-se, afinal, da tendência que o francês Dominique Mehl define como a
da "televisão da intimidade", espraiada um pouco por todas as latitudes, e de
que os "reality shows" tão na moda são a espuma mais evidente.

Esta "televisão da intimidade", como diz Mehl, "traz a confidência para a
praça pública, coloca em cena histórias privadas, doenças, desgraças,
dificuldades, problemas vividos e contados na primeira pessoa". Com esta
"publicização do privado", é a própria noção de espaço público, tal como
estávamos habituados a considerá-lo, que se altera: "A palavra privada já não vem apenas ilustrar uma proposição, acompanhar uma demonstração. Ela vale em si mesma como palavra pública, ou seja, como palavra susceptível de alimentar o debate colectivo". Um debate que acaba por viver da promoção da experiência, da hipervalorização da emoção, do "mostrar" mais do que "demonstrar". E as fronteiras que tradicionalmente delimitavam as esferas pública e privada vão-se alterando.

Não sucede isto só na televisão - certos formatos de informação e
programação mais "vivos", mais "com gente dentro", mais com "imagens
fortes", vão contagiando todos os media -, nem é exclusivo dos programas de entretenimento. O próprio modo de fazer informação, em anos recentes,
tem-nos fornecido espantosos exemplos de atropelo aos direitos mais
elementares de qualquer ser humano. Cidadãos "anónimos" são catapultados
para a cena pública, normalmente devido a circunstãncias trágicas (guerras.
catástrofes, acidentes), suas ou de familiares, e é ver a comunicação social
entrar-lhes sem pudor pela casa dentro, invadir-lhes a vida, devassar-lhes a
alma, expondo a todos a sua dor, as suas lágrimas, o seu drama, o seu
espanto, "obrigando-as" a contar e a recontar, a olhar, a recordar... Não é
isso, as mais das vezes, uma grosseira intromissão na privacidade de seres
humanos, não é isso uma inaceitável ofensa à sua própria dignidade - mesmo
que eles próprios não estejam, no momento (e como poderiam?....),
conscientes disso?

O direito à reserva da vida privada é uma aquisição recente das nossas
sociedades mas inscreve-se num direito fundador mais global: a inalienável
dignidade de todo o ser humano. E é para questões de dignidade que, afinal,
remetem muitas destas dúvidas suscitadas por certas exposições do privado
em público.

Há um lado muito positivo no facto de a cena mediático se ter aberto aos tais "cidadãos anónimos", dando-lhe existência real, possibilidade de voz e um protagonismo que costumava ser privilégio só de alguns. Mas tal alargamento redunda em aproveitamento perverso quando, abusando das naturais fragilidades de quem não se movimenta à vontade nesses espaços, se faz dos convidados de um programa meros "bobos da corte", para gáudio da assistência. Humilham-se pessoas a troco de uns minutos de notoriedade, negoceiam-se sentimentos por um maço de notas, transforma-se gente em ratos de laboratório para vermos se e como se amam, se zangam, se agridem, se (já agora...) matam.

É por isso que, mais do que de privacidade, se pode e deve falar de
dignidade. Como recentemente alertava Maria de Lurdes Pintasilgo, a
propósito do "Big Brother" (Visão, 4/10/00): "Aceitar que a pessoa humana
seja colocada à mercê de mecanismos psicológicos que a ultrapassam é ferir
a dignidade da pessoa humana, ignorando-a e desprezando-a".

O mais difundido argumento em defesa destes "espectáculos" que a TVI
elevou ao paroxismo (o "Big Brother" já nem é só um programa: é todo um
canal a remar para o mesmo, demitindo-se até do espaço tradicionalmente
dedicado à ordenação jornalística das notícias...) é que eles se fazem com o
consentimento dos visados. Se são os próprios que se deixam filmar 24 horas por dia num espaço concentracionário, quel é o problema? Problema deles...

Talvez não.

Primeiro, porque quem dirige uma televisão ou uma rádio não toma decisões
apenas em função das autorizações das pessoas. Há valores, há regras, há
princípios profissionais e éticos, que não desaparecem de ânimo leve. Se
amanhã uma pessoa viesse oferecer-me uma fotografia escabrosa e me
deixasse publicá-la no jornal, eu não ia a correr publicá-la. Porquê? Porque,
independentemente dela e da sua autorização, os princípios por que se rege o jornal não contemplam a publicação desse tipo de imagens. Podia a pessoa nem estar preocupada com a sua dignidade, mas o jornal devia preocupar-se. E não por moralismo.

Depois, é duvidoso que qualquer pessoa tenha o direito de alienar, pura e
simplesmente, a sua própria dignidade. Posso ir para a praça pública (ou para a televisão) fazer o que me apetecer, por mais degradante que seja para mim próprio, desde que eu o faça de livre vontade? Ou não será que a dignidade de cada ser humano, individualmente considerado, é, também, de algum modo, património de todos nós? Quando alguém abdica dela, e disso faz espectáculo público, não estará a causar prejuízo a todos nós, seres
humanos, e à nossa vivência em sociedade?

Sobra, enfim, o problema do que fazer. Proibir estas coisas, se caem na
alçada da lei? Criar novas leis para as proibir, caso haja omissão legal? Ou ir trabalhando (na conversa, no debate, na família, na escola, no emprego, nos jornais...) para que, independentemente de proibições, vá havendo cada vez menos gente a gostar de se expor a indignidades - e menos gente a gostar de ver exposta a indignidade alheia? Como sugeria Laborinho Lúcio no colóquio atrás citado, se há uma maioria de pessoas a gostar de certas coisas de que eu não gosto, em vivência democrática devo empenhar-me para que a essa maioria suceda uma outra maioria mais consentânea com aquilo em que acredito.

Quanto ao fundo da questão, acrescentava: "Vivemos, e vamos continuar a
viver, tempos complexos, tempos de incerteza. Ora das duas, uma: ou
queremos apenas diminuir a incerteza, começando a fabricar leis e mais leis,
ou aprendemos a viver nessa incerteza e com essa incerteza, não resignados
mas bem conscientes dela, agindo para tentar mudar as coisas, começando
em nós próprios e no que nos está mais próximo".

Não é receita milagrosa com resultados para amanhã. Mas não sei de melhor.

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