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A Ciência Que (Não) Sai no Jornal
Por JOAQUIM FIDALGO
Domingo, 8 de Outubro de 2000

As relações entre a comunidade científica e a comunidade jornalística nem sempre são fáceis. É, porventura, a insuficiente compreensão mútua quanto às especificidades de cada um destes campos que está na base de alguns atritos e críticas de parte a parte. Contudo, parece evidente que, hoje mais do que nunca, as duas comunidades estão "condenadas" a entender-se: a ciência precisa de abrir as janelas do castelo em que se habituou a viver enclausurada, funcionando excessivamente em circuito fechado e com uma linguagem quase só acessível a iniciados; o jornalismo, se quer corresponder
às expectativas crescentes de públicos diversificados, não pode deixar de
informar sobre matérias de índole científica, ajudando à sua divulgação e
tornando visível o seu cruzamento com a vida real das pessoas.

Na última semana, tivemos notícia de duas importantes realizações que
juntaram à mesma mesa cientistas e jornalistas. Em ambos os casos - o
Colóquio Luso-Brasileiro sobre Comunicação Pública da Ciência e uma
mesa-redonda no XII Congresso Nacional de Bioquímica - a iniciativa coube aos cientistas, facto que se saúda e que atesta a importância que esta
comunidade atribui hoje a um maior e melhor conhecimento daquilo que
costuma ficar oculto no segredo dos laboratórios ou dos gabinetes de
investigação. Pelos relatos dos jornais, percebeu-se que foram duas
excelentes oportunidades para que profissionais de dois "mundos"
particulares identificassem algumas das barreiras que os separam.

O tema interessa ao provedor, pois com frequência ouve comentários críticos de leitores sobre este assunto, e com dois enfoques distintos: há os que acusam o jornal de ser, aqui e além, demasiado redutor ou simplista (para não dizer até sensacionalista...) na abordagem de complexos temas sobre os quais se faz investigação científica, e há os que, em contrapartida, se queixam quando o jornal trata matérias de ciência com uma linguagem de tal modo hermética que só um especialista as percebe.

A questão não é fácil. Como disse ao provedor a editora da secção de
Ciência & Ambiente do PÚBLICO, Ana Fernandes, "o principal desafio do
jornalismo científico é, precisamente, conseguir fazer a ponte entre a
linguagem, muitas vezes hermética, dos cientistas, e a linguagem comum, de
forma a tornar a informação perceptível por quem não é biólogo, químico ou
físico". Ora isso, desde logo, faz-se mais facilmente quando se pode escrever um texto longo, onde a notícia propriamente dita ocupa uma pequena parte e o seu enquadramento ou explicação ocupam a maior fatia. Mas, como concorda Ana Fernandes, "em pequenas notícias as explicações técnicas são muitas vezes sacrificadas". E um jornal de informação geral, destinado a públicos variados, não pode ter muitos textos muito longos, sob pena de só ser lido por muito poucos.

Segundo esta editora, o jornalista da especialidade "precisa de compreender
temas por vezes muito complicados, num período de tempo muito reduzido, e encontra-se entre dois fogos: a necessidade de escrever simples, e o
escrutínio a que está sujeito por parte dos cientistas, que são bastante ciosos
da sua linguagem". Em sua opinião, os cientistas precisam de entender que
"para comunicar com o grande público, há que assumir que se perde alguma
informação". "Mas isso não quer dizer que se tenha de perder rigor",
acrescenta, evocando o exemplo do desaparecido Carl Sagan e do equilíbrio com que geriu este dilema.

São três, basicamente, as críticas da comunidade científica (entendida em
sentido lato, abarcando os estudiosos e investigadores da química, da
biologia ou da matemática , mas também da sociologia, da psicologia ou da
história, do direito ou da economia...) aos jornalistas: que (1) escrevem
muitas vezes sobre assuntos de que não sabem nada nem procuraram saber,
que (2) tendem assustadoramente a simplificar o que é complexo e a só ficar
pela rama dos assuntos, e que (3) estão mais preocupados em encontrar uma informação forte para fazer um título bombástico do que em dissecar as
matérias com cuidado, ou até em as perceber.

Trata-se, em não poucos casos, de críticas bastante razoáveis. Contudo,
podem denotar também algum desconhecimento das especificidades da
actividade jornalística, das suas exigências particulares, dos seus códigos
próprios, reclamando dela aquilo que ela, em boa verdade, não está em
posição de dar - sob pena de se negar a si própria e, "servindo" bem os
cientistas que estão do lado da produção da notícia, acabar por "servir" mal
os leitores, que estão do lado da recepção e são quem interessa atingir.

Para fazer uma notícia, o jornalista segue determinados critérios que não são
necessariamente coincidentes com os da investigação ou da divulgação
científica. E tem determinadas prioridades que não são, frequentemente, as
do cientista. Além de que, se quer fazer o seu trabalho com qualidade,
precisa também de se preocupar com a eficácia do processo comunicativo.
Se produz um texto muito correcto, muito denso, muito completo na
multiplicidade das suas abordagens, mas que quase ninguém vai ler e só dois
ou três especialistas vão perceber, então falhou enquanto jornalista. Não
deve ficar satisfeito com isso - mas também o próprio cientista tem poucos
motivos para se contentar, pois a sua "novidade" acabou por não ser
comunicada a ninguém, mesmo tendo saído no jornal...

Não se deduza daqui que o caminho de aproximação entre cientistas e
jornalistas tem de ser todo feito à custa dos primeiros.

É obrigação do jornalista (que não sabe tudo de tudo, nem tem de saber)
estudar, preparar-se, quando vai tratar certas matérias, e perguntar, e ouvir,
para não escrever disparates. Por outro lado, o jornalista tem que saber
"traduzir" bem a complexidade dos assuntos que aborda, de modo a
torná-los acessíveis a públicos vastos e heterogéneos, mas sem ceder ao
simplismo ou à tentação do efeito fácil. Nem tudo pode reduzir-se a "branco
é, galinha o pôs"... Enfim, deve cuidar de tornar interessantes e apelativas
matérias por vezes áridas no enunciado, descortinando nelas os elementos
susceptíveis de captar a atenção dos seus leitores - sem que tal signifique
fazer títulos sensacionalistas ou enganadores.

Nada disto é muito especial. É apenas o trabalho normal de um profissional
da informação rigoroso, sério e competente, preocupado com a qualidade
daquilo que faz. E, fazendo-o, não está a prestar favor nenhum à comunidade científica: está apenas a tentar servir bem os leitores, ou seja, a cumprir o seu dever.

Dos cientistas, entretanto, espera-se que saibam comunicar com os jornalistas sem pensarem que com isso estão a baixar de nível ou a vulgarizar a riqueza e a complexidade das suas investigações. Espera-se também que conheçam melhor os critérios (e os constrangimentos) específicos da actividade jornalística, para poderem utilizá-los em favor da divulgação da ciência e para não terem desilusões desnecessárias - reclamando, por exemplo, de jornais de informação geral aquilo que só uma revista especializada poderia dar-lhes. O que, neste contrato, eventualmente se perde de pormenor na informação a difundir, ganha-se no enorme alargamento de audiências para as temáticas científicas, algumas ainda tão pouco noticiadas.

Se ambos, cientistas e jornalistas, fizerem bem a sua parte de caminho para
este compromisso possível, ambos ganham. Mas, mais que eles, ganhamos
nós - os leitores.

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