Cada Notícia no Seu Lugar
Por JOAQUIM FIDALGO
Domingo, 17 de Setembro
de 2000 Se a directora de uma pousada da Enatur é despedida por,
supostamente, ter tratado um ministro por "senhor", o assunto é notícia? E é
notícia para o PÚBLICO? E com que desenvolvimento, com que destaque?
Compliquemos: e se o tal tratamento de "senhor" é apenas um (porventura nem
sequer o mais relevante) de vários motivos invocados para o dito despedimento? Continua a
ser notícia? E com idênticos contornos e projecção?
Compliquemos mais: e se o ministro em causa, mesmo vendo o seu nome invocado no
processo de despedimento, não tiver tido nada a ver com o episódio, até o repudiando?
Deve ele, nesse caso, ser o protagonista da notícia, o chamariz do título, a cara da
fotografia?
A situação não é imaginada. Ela surgiu na semana passada, no PÚBLICO - edição de
8/9 -, começando logo na primeira página ("Enatur - Despedida por dizer 'senhor
Armando Vara'") e continuando no interior, na abertura da secção Política
(título: "Enatur despede gestora por tratar governante apenas por 'senhor'").
À generalidade das perguntas atrás colocadas, o jornal respondeu "sim":
considerou que o assunto era notícia, deu-lhe grande destaque, com chamada à capa e
honras de abertura de secção mais a correspondente foto, e conferiu o maior protagonismo
ao ministro Armando Vara, embora tenha explicado, no texto, que ele era totalmente alheio
à questão e a considerava "inacreditável". Se ele até gosta que o tratem por
"senhor"...
Do que Armando Vara não gostou foi do que viu no PÚBLICO: "Como se comprova pela
leitura da notícia, nada tive a ver com o conflito que se instalou entre a Enatur e a
pessoa visada. (...) E, todavia, para meu espanto, verifico que o meu nome é usado
instrumentalmente com o objectivo de dar relevo político à notícia, induzindo o leitor
a pensar que terei sido eu o próprio queixoso".
Também a Enatur, pela pena do seu presidente, Eduardo Âmbar, fez chegar uma queixa ao
provedor, criticando o jornal pelo "envolvimento indevido de um membro do Governo num
assunto de ordem interna" da empresa. Não negando a história do tratamento ao
ministro (que apoda de "falta de urbanidade"), diz que ela ocupa "não mais
de cinco linhas" no processo e conclui: "O motivo a que o PÚBLICO dá destaque
como causa aparentemente essencial do despedimento é manifestamente secundário no
processo".
Antes de passarmos aos argumentos da "defesa", um ponto convém clarificar
desde já: ao confirmar a existência deste argumento no processo de despedimento, mesmo
que em "não mais de cinco linhas", a Enatur deve assumir a responsabilidade
pelo envolvimento do nome do ministro num "assunto de ordem interna". Foi ela
quem, confessadamente, o fez - e o jornal apenas citou o que constava do processo.
Questão diferente, essa sim, é a da maior ou menor valorização que os responsáveis
editoriais entenderam atribuir ao episódio.
O jornalista Pedro Garcias, autor da peça, defende a sua dama, embora seja o primeiro
a concordar que o título não será dos mais felizes e a penitenciar-se por isso:
"Devia ter ficado claro para o leitor, logo numa primeira leitura, que o tratamento
do ministro por 'senhor' era um entre vários motivos invocados para o despedimento, e
não "o" motivo.". E era motivo muito importante? Diz Pedro Garcias que foi
a Enatur quem o sobrevalorizou, a tal ponto que - como se explicava no texto - pediu a um
autarca da zona um testemunho escrito que comprovasse ter a directora da pousada chamado
"senhor Armando Vara" ao ministro. "Foi o próprio advogado da Enatur que,
ao fazer esse pedido, disse ao autarca que era um dado muito importante para o
processo", acrescenta.
Quanto ao facto de o assunto ser notícia, o jornalista não tem dúvidas. Claro que a
circunstância de ele envolver o nome de uma figura pública não é indiferente. Mas,
independentemente de o ministro ter ou não pactuado, Pedro Garcias defende que está em
apreciação uma empresa pública, e "não deixa de ser significativo, até em termos
políticos, o enorme zelo com que gestores públicos querem 'mostrar serviço' ao
ministro, punindo uma funcionária por motivo tão insólito...".
Neste mesmo sentido se pronuncia o editor de Política Eduardo Dâmaso, responsável
pela decisão de atribuir tal importância ao caso nas páginas do PÚBLICO. E não lhe
parece que tenha havido aproveitamento indevido da figura de Vara: "Ele pode não ter
tido nenhum protagonismo activo na história mas certamente não lhe será indiferente a
invocação do seu nome numa história que implica o despedimento de uma funcionária
naquelas circunstãncias". Dâmaso admite até que um caso destes, pelo inédito,
seria notícia mesmo sem ministro à mistura. "Tratar um superior hierárquico apenas
por 'senhor' é um insulto?", pergunta-se.
Coisa pouco diferente diz o director do PÚBLICO: "Processos de despedimento há
aos milhares. Processos de despedimento invocando ter chamado 'senhor' a um ministro é
que são raros - logo, são notícia. E era inevitável, neste quadro, associar Armando
Vara à notícia". Num ponto José Manuel Fernandes faz auto-crítica: a fotografia
com que se ilustra a peça (mostrando o ministro com ar meio ameaçador, cigarro ao canto
da boca) parece-lhe uma escolha "pouco feliz", com uma "carga
negativa" que o texto não tem.
Que pensar, então, disto? E que ilações tirar para além do casuístico, que é o
que aqui importa?
Justificava-se fazer notícia do assunto, pelo lado insólito e pelo carácter exemplar
que pode ter, para além do "fundo" político para que aponta - o das empresas
públicas e do seu relacionamento com o poder. Era óbvia a necessidade jornalística de
meter Armando Vara na história, pois os próprios autores do processo o meteram lá.
Finalmente, o texto da notícia parece correcto e adequado.
Já não parecem correctos nem o carácter excessivamente redutor dos títulos (que
induzem em erro) nem o aproveitamento da figura de Vara para além do razoável (por
exemplo na fotografia). Mas, sobretudo, o que parece pouco adequado é o destaque que se
deu a esta notícia, fazendo dela um dos principais assuntos do dia no PÚBLICO.
Ao ver as matérias informativas hierarquizadas de certa forma no jornal (para o que
muito contribui a localização na página, a associação a uma fotografia, o tamanho do
título), o leitor espera, legitimamente, que isso lhe transmita sinais sobre a
importância relativa dos assuntos - logo, uma determinada visão do mundo e daquilo que
convém reter mais ou menos. Acontece todos os dias tanta coisa que é fundamental
proceder a estas escolhas e valorizações, residindo aí um dos mais importantes factores
de identificação do leitor com um jornal e não com outro. Assim, não se pode
"puxar" demais por um assunto que, embora curioso e noticiável, está em
patamar bem distinto das matérias substanciais que alimentam a nossa vontade/necessidade
de informação.
Há jornais que são meros amontoados de "fait-divers" e que chamariam um
figo a este caso, com ele fazendo toda a primeira página e mais um folhetim de sucesso.
Não é o caso do PÚBLICO. Claro que os "fait-divers" também podem entrar num
jornal sério e de referência, até para temperar a leitura quotidiana e aligeirar um
pouco o contacto com tanto assunto complicado e duro. Não só o "importante"
tem lugar; o "interessante" também o tem. Mas é um lugar bem próprio e de
proporções razoáveis, que não consente confusões com a informação realmente
significativa. De outro modo, é gato por lebre.
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