As "Fontes Oficiais" e as Outras
Por JOAQUIM FIDALGO
Domingo, 10 de Setembro
de 2000 Nem de propósito: o noticiário político desta semana trouxe-nos
dois curiosos exemplos dos dilemas jornalísticos sobre os quais aqui se procurou
reflectir no último domingo.
Na quinta-feira, os principais jornais davam destacadamente uma notícia com interesse:
a Comissão Política do PCP decidira escolher António Abreu como candidato às próximas
eleições presidenciais. PÚBLICO, "Diário de Notícias" (DN) e "Jornal
de Notícias" (JN), para citar apenas os mais relevantes, apresentavam aquela escolha
como certa, davam-lhe honras de primeira página - até com foto - e adiantavam o
currículo do candidato. No caso do PÚBLICO, foi até feito um editorial sobre o assunto,
naturalmente no pressuposto de que era um dado adquirido.
Esta informação, no entanto, era tudo menos oficial. Da reunião da Comissão
Política do PCP não saíra nenhum comunicado e nenhum organismo do partido fornecera
qualquer dado aos jornais. Pelo contrário: quem contactasse os serviços de imprensa do
PCP (como fez o jornalista Raposo Antunes, do PÚBLICO), perguntava se tinha havido alguma
decisão sobre o candidato presidencial e não recebia qualquer resposta; perguntava se
António Abreu tinha sido o escolhido e não ouvia nem confirmação nem desmentido; a
única posição oficial era que o PCP, tal como já dissera, apresentaria o nome no
sábado (ontem, portanto), depois da reunião do Comité Central.
No caso do JN, a notícia, assinada pela jornalista Ana Paula Correia, começava assim:
"Ninguém do aparelho do PCP o confirma oficialmente, mas o nome de António Abreu,
actual vereador da Câmara de Lisboa, foi o escolhido pela Comissão Política para ser o
candidato comunista à presidência da República". E citava o próprio António
Abreu que, perguntado sobre a matéria, respondeu: "Nada tenho a dizer, só sei que o
nome do candidato sairá do Comité Central de sábado".
O DN, por seu lado, também não atribuía a informação a qualquer fonte
identificada, limitando-se a dá-la como certa - e confirmando, aliás, a previsão que na
véspera adiantara.
Vemos, assim, que ninguém conseguiria ter dado esta notícia se se tivesse limitado
aos canais oficiais de recolha de informação. Em contrapartida, para a dar (e ela foi
dada de modo tão generalizado que a possibilidade de engano não se colocaria na opinião
pública), os jornalistas tiveram que recorrer a fontes não identificadas, pois não se
imagina que um qualquer dirigente do PCP (e logo do tão disciplinado PCP...) viesse dizer
para a imprensa, mostrando a cara: "Estive na reunião da Comissão Política, ou
falei com quem lá esteve, e garanto que o candidato escolhido foi António Abreu".
Ficando-se pelas declarações oficiais, nenhum jornalista teria dado esta notícia
antes de sábado, que era o desejo do PCP - até porque, formalmente, só depois da
ratificação pelo Comité Central é que o candidato está escolhido. Mas as notícias
não têm que esperar em função dos desejos ou estratégias de comunicação dos
partidos; elas dão-se quando se descobrem e se confirmam, mesmo com recurso a fontes não
identificadas, caso não haja alternativa e o assunto seja considerado de interesse
público.
O segundo exemplo é pouco diferente, salvo na circunstãncia de ter fornecido duas
"verdades": a verdade oficial e a verdade jornalística. Foi o caso da demissão
do secretário de Estado do Tesouro e das Finanças, Nogueira Leite.
Voltando aos três jornais já citados, verificamos algumas diferenças. O JN dizia que
o secretário de Estado alegava "razões de natureza estritamente pessoal" para
o abandono, e por aí se ficava. O PÚBLICO escrevia em título que Nogueira Leite saía
do Governo "por divergências políticas"; ao longo do texto, citando embora a
alegação de "razões pessoais" por parte do demissionário, acrescentava (com
base na vaga fórmula "segundo o PÚBLICO apurou") que a saída "[teria]
ocorrido por divergências em relação à política económica do Governo, nomeadamente
no que diz respeito ao crescimento das despesas públicas". O DN ia ainda mais longe
na leitura política do acontecimento, fazendo manchete antecedida da palavra
"Crise" ("Ruptura nas Finanças - Secretário de Estado do Tesouro
demite-se em confronto total com a política do ministro Pina Moura"), mas também
não atribuindo esta informação a qualquer fonte com nome ou cargo próprio.
Identificada era apenas a origem da verdade oficial: Nogueira Leite e as suas
"razões pessoais".
Sejamos francos: alguém que procure informação política completa e aprofundada se
bastaria com a notícia (sem dúvida rigorosa e objectiva, mas nada mais que a versão
oficial) dada pelo JN? Até por já estarmos demasiado habituados a estafadas
explicações oficiais para encobrirem problemas incómodos ou "passarem ao
lado" do que realmente importa, esperamos que um jornali sta não se dê por
satisfeito com o comunicado formal ou "amarrado" por ele mas, pelo contrário,
procure saber o que de facto se passou. E se consegue informações relevantes, mesmo
contrárias à verdade oficial, deve dá-las ao público. Importa, obviamente, que as
tenha confirmado junto de mais de uma fonte, por razões de segurança e de credibilidade.
O preço a pagar, já o vimos, é por vezes a obrigatoriedade de não identificar as
fontes -com o inerente risco de menor credibilidade.
Sobra a questão (a que chegámos na semana passada) da legitimidade de utilizar fontes
não identificadas para transmitir opiniões, apreciações, juízos - e não só
informações de facto.
Embora as fronteiras por vezes sejam ténues, há uma diferença substancial entre
dizer que "segundo uma fonte do PCP, António Abreu foi escolhido pela Comissão
Política para candidato presidencial" ou dizer que "segundo uma fonte do PCP, a
Comissão Política fez uma óptima / uma péssima escolha ao decidir-se por António
Abreu". No primeiro caso, temos uma informação fornecida por quem assistiu a uma
reunião fechada ou dela teve conhecimento fidedigno, e uma informação objectiva,
factual, comprovável; no segundo caso, faz-se um juízo de valor, dá-se uma opinião
clara, e isso só é verdadeiramente significativo se se souber quem é que a faz. Ao não
se identificar a fonte, fica sem se saber se ela é mais ou menos importante no aparelho
partidário, se está ligada a esta ou àquela corrente, se tem interesses directos na
decisão, etc. Ora. ficando sem se saber isso, dá-se azo a todas as especulações e
caminha-se facilmente para o jogo politiqueiro, para a intriga, para a desinformação,
para a criação de "factos políticos" virtuais.
Quando recomenda que só sejam reproduzidas opiniões "atribuíveis a fontes
claramente identificadas", o Livro de Estilo do PÚBLICO pretende, muito justamente,
não abrir caminho a essas perversões e a uma certa irresponsabilidade que advém da
circunstância de se querer ter opinião mas não se ter a frontalidade de dar a cara por
ela.
Por outro lado, do ponto de vista dos leitores, que relevância pode ter um juízo de
valor se não se souber quem o faz? Se se atribui uma opinião a "um dirigente do
PS", tanto pode ser o último nome da lista da Comissão Nacional, como um
responsável de uma estrutura distrital ou o ministro Jorge Coelho - sendo que, em
contexto político-partidário, elas terão um peso totalmente diverso. Deixando a
questão mergulhada na ambiguidade, todas as hipóteses ficam em aberto, verdadeiras ou
fantasiosas. Ora a ambiguidade nunca favorece a informação - mas dá azo a qualquer
aproveitamento...
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