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A Política, o Ser e o Parecer
Por JOAQUIM FIDALGO
Domingo, 3 de Setembro de 2000

Se há terreno escorregadio no que toca a uma informação rigorosa, transparente e objectiva quanto possível, é o terreno da política. Lá, mais do que noutros domínios, as coisas nem sempre são o que são, mas o que parecem ser; lá, boa parte dos factos observáveis e reportáveis não são realmente factos - são opiniões, intenções, previsões; lá, o que mais pode interessar para a plena compreensão das situações passa-se quase sempre nos bastidores ou em reuniões fechadas, que só se noticiam por acção de terceiros (tantas vezes interessados); lá, mais do que em qualquer outro sector, o que se diz em público não é o que se pensa, nem o que se pensa é o que se diz; lá, fala-se "off the record" como em nenhum outro sítio.

No meio de areias tão movediças, que faz o jornalista da política? Recusa entrar nesse jogo, limitando-se a escrever sobre aquilo que viu e ouviu publicamente, por muito burocrática e enfadonha que possa ser a tarefa de apenas reproduzir as declarações oficiais dos nossos governantes e oposicionistas? Mas, ao fazê-lo, não se arriscará a "passar ao lado" do que é verdadeiramente importante, do que vai marcar os destinos futuros da nossa vida política - e que, em fases preparatórias, tão pouco aparece nos discursos ou manifestações oficiais? Ou seja: não se arriscará a produzir notícias pouco mais que irrelevantes, a ser um mero "pé de microfone" que ecoa para a população o que os dirigentes querem que ela ouça?

No prato oposto da balança, vai o jornalista da política mergulhar de cabeça nesse jogo de conversas de bastidores, de fontes não nomeadas embora "dignas de crédito", de reuniões secretas mas que se reconstituem tim-tim por tim-tim, de revelações e previsões onde a única confirmação possível é a de que "o futuro dirá" - sendo que, em política, o futuro está sempre a mudar conforme as necessidades ou os interesses?... E, ao fazer assim, o jornalista não se arriscará a tornar-se, ele próprio, num peão do jogo que diz reportar, prestando-se aos mais diversos aproveitamentos e intrigas?

Entre "pé de microfone" e "moço de recados", venha o diabo e escolha... Seria lamentável (para os jornalistas, mas sobretudo para os leitores) se não houvesse opção intermédia face aos dois extremos aqui caricaturados. Há um meio-termo de bom senso e de equilíbrio, facilitado por princípios e práticas profissionais que todos os jornalistas bem conhecem mas que por vezes parecem esquecer ou desvalorizar: responsabilização clara por tudo o que se escreve (sem anonimato), diversificação das fontes preferenciais de informação política (para contrariar dependências excessivas de uma pessoa ou de uma facção), atribuição o mais próxima possível das informações divulgadas (não podendo citar-se o nome da fonte, que se diga de que organismo é, ou a que grupo pertence, para se perceber se há conflito de interesses), observância escrupulosa do princípio do contraditório (dando voz e direito de réplica a todos os visados), distinção entre o que claramente é opinião do jornalista e o que são factos mais suas interpretações.

O problema de fundo, e que torna esta matéria particularmente melindrosa, é que os meios de comunicação social não são, hoje, apenas o terreno onde se informa sobre a política; eles são, e de modo crescente, terreno privilegiado da própria acção política.

Vem isto a propósito do discurso de António Guterres em Esposende, neste ritual de "rentrée" política com que se anima o fim das férias. Dissesse ele o que dissesse, face ao ambiente de insatisfação que se foi disseminando tanto em círculos da oposição como nos meandros do poder e do PS, dificilmente as reacções (generalizadamente pouco abonatórias, recorde-se) seriam diversas das que foram. E as reacções são importantes para a produção da opinião pública: um discurso político é o que é, mas é sobretudo aquilo que dele dizem e fazem.

Não custa acreditar que os próprios socialistas, nesta fase de refluxo de mobilização, se tenham sentido pouco entusiasmados com as palavras do seu líder. Eles mesmos o foram dando a entender tanto no local como nos dias seguintes. Mas nenhum dos notáveis, ao que consta, o fez com o nome próprio: todos optaram pelo anonimato, como se lia por exemplo na notícia do PÚBLICO da passada segunda-feira, sob o título "Guterres defrauda expectativas". Responsáveis do PS, não identificados, disseram a jornalistas que o discurso de Guterres fora "chato e longo", "demasiado previsível", "nada empolgante"; se se perguntasse a esses mesmos responsáveis o que pensavam e eles falassem com nome por baixo, ou frente a uma câmara de televisão, era isso mesmo que diriam? Ou, pelo contrário, multiplicariam elogios ao primeiro-ministro? E qual seria, das duas, a informação mais verdadeira?...

Quem se sentiu injustamente visado por esta notícia foi o ministro José Sócrates, a quem se aludia na seguinte passagem: "No final da intervenção do líder do PS, o rosto de alguns ministros, como José Sócrates ou Armando Vara, continuava tão carregado como de início. Só mesmo Fernando Gomes parecia satisfeito com as palavras do primeiro-ministro (...)". Em carta ao provedor, Sócrates questiona a "fidedignidade, idoneidade ou mesmo validade ética de uma prática jornalística que constrói notícias a partir de pretensas leituras faciais, promovendo uma leitura psicanalítica de legitimidade mais do que duvidosa". Mais se queixa de não ter sido contactado pelos autores da notícia ou sequer de os ter visto no local pois, nesse caso, ter-lhes-ia dito como estava "particularmente bem disposto e como [gostara] efectivamente do discurso".

O jornalista Raposo Antunes, co-responsável pelo texto e autor da passagem em causa, admite uma falha: ele de facto não esteve no local, tendo ouvido as referências ao semblante de José Sócrates da boca de dirigentes do PS "que lá estiveram, que viram mas que só quiseram falar sob anonimato". Dado que se trata de uma informação prestada em segunda mão, e para mais com a carga subjectiva que ela implica, parece evidente que o jornalista devia, no mínimo, ter contado isso mesmo ao leitor; de outro modo, fica-se com a ideia que foi ele próprio quem viu o que, afinal, não viu. Mesmo dizendo, como diz, que as fontes por si utilizadas "são de absoluta confiança". Também do lado dos jornalistas não chega o ser; é preciso parecer.

Sobre a questão mais de fundo - a da construção de uma notícia toda baseada em fontes anónimas -, o texto também merece reservas. Apesar do que ficou dito atrás sobre a dificuldade (mas correlativa necessidade) de descobrir a informação relevante nas encenações políticas, e não se duvidando da boa fé do jornalista em procurar a verdade, o certo é que a notícia não se rodeou dos cuidados devidos. Por exemplo, ao decidir dar conta do estado de espírito "privado" de José Sócrates (o que já é arriscado...), então que se lhe desse ao menos a oportunidade de exteriorizar o seu sentimento "público"; e entre as duas verdades decidiriam os leitores. Ou ficariam com ambas - coisa nada invulgar em política.

Enfim, relembre-se um princípio muito esquecido do Livro de Estilo deste jornal: "Quando se trata de opiniões, o PÚBLICO só reproduz as que forem atribuíveis a fontes claramente identificadas". Pode haver justificação para recolher dados informativos de uma fonte que deseje manter-se anónima, mas não opiniões, para que não se abra caminho à irresponsabilidade de juízos. É assunto a que vale a pena voltar, pois o escrito já vai longo. 

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