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Leitores de Boa Memória
Por JOAQUIM FIDALGO
Domingo, 30 de Julho de 2000

Diz-se que os jornais (e os jornalistas) têm má memória. O que é bastante verdade. Confrontados com a necessidade de andar à procura do novo, interessados em surpreender o leitor com matérias palpitantes todos os dias, desafiados por um clima de crescente competição pelas notícias mais frescas, os jornais tendem a saltar rapidamente de assunto para assunto e a esquecer o acompanhamento das novidades por si próprios anunciadas.

Em tempos, numa roda de jornalistas, conversava-se sobre a quantidade de notícias que os jornais dão (promessas, intenções, projectos) mas que acabam por redundar em puras mentiras. Um exemplo era o das campanhas eleitorais, nacionais ou autárquicas, a propósito das quais dizia alguém: "Damos sempre grandes notícias sobre o que os políticos prometem que vão fazer, como se de realidades incontestáveis se tratasse, mas nunca vamos ver, depois, se eles de facto cumpriram, tim-tim por tim-tim, o que anunciaram. E era nossa obrigação fazê-lo. De outro modo, pactuamos com a demagogia...".

Outro exemplo vinha das áreas económicas, recordando os jornalistas daquela tertúlia quantos títulos de jornal são feitos com certos anúncios ("empresa X vai construir isto", "grupo Y entra no negócio de não sei quê", "senhor Z vai fazer uma fábrica e criar tantos postos de trabalho") que, de facto, não passam de simples intenções, de ideias no papel. Se amanhã um nome conhecido convocar a imprensa para divulgar um qualquer projecto, lá vai toda a comunicação social noticiar e amplificar a "boa nova"; mas quase ninguém se lembra de, meses ou anos mais tarde, ir ver se aquilo realmente se fez ou não, e porquê.

Na prática, muitos destes anúncios reduzem-se a estratégias promocionais - destinadas, sabe-sa lá, a forçar a obtenção de determinados subsídios, ou apenas a favorecer a imagem dos seus protagonistas - com as quais a imprensa acaba por pactuar. E não faz a segunda parte do seu trabalho, como lhe compete: seguir as questões, exercer vigilância crítica no espaço público, saber se os cidadãos foram enganados com informação, afinal, falsa. Ou seja, assumir as responsabilidades pelas notícias que ela própria difundiu.

Neste contexto, é gratificante ver que nem sempre as coisas passam impunemente e que, se os jornalistas podem ter má memória, há leitores atentos e dispostos a ajudá-los, lembrando o que deve ser lembrado. Inclusive ao provedor, que no caso vertente também se esqueceu de uma promessa...

O leitor Luis Veiga criticou, em Março passado, um título do PÚBLICO em que se anunciava que o gás natural ia ser mais barato. O assunto foi analisado nesta coluna, tendo-se concluído que a notícia induzia em erro: à época o gás natural ia ser, afinal, mais caro, e só se sugeria (fazendo fé nas promessas do director de uma companhia distribuidora) que ele talvez ficasse mais barato a partir de Julho. Mas mesmo essa eventualidade era nebulosa, pois dependia da evolução dos preços do petróleo. Só que nem isso coibiu o PÚBLICO de titular, preto no branco, "Gás natural mais barato". Analisada a questão - e criticada a opção do jornal - , concluía o provedor (ver coluna de 30/4/00): "Já agora, em Julho lá veremos para que preço vai o gás!"

Chegou Julho e o provedor não se lembrou de ir ver. Nem o jornal se lembrou de ir confirmar o andamento dos factos e pedir contas a quem fizera promessas em Março. Ou pedir contas a si próprio, jornal, pois, ao fazer título com a dita promessa, assumiu implicitamente a sua veracidade. Mas lembrou-se o leitor Luis Veiga - e muito bem! Esta semana, escreveu ao provedor uma carta sem palavras (de facto, não eram precisas...) e anexou duas simples fotocópias: da tal coluna de 30/4/00 e de uma página da última edição do jornal "Expresso" onde se pode ler, com grande destaque, "Preço do gás natural aumenta 5% em Julho". E lá está, cheio de justificações, o responsável da mesma empresa que, há escassos quatro meses, tinha prometido, com grande acolhimento nas páginas do PÚBLICO, uma baixa de preço do gás no segundo semestre do ano...

Está tudo dito, não está?

Só mais duas notas: uma de agradecimento ao leitor Luis Veiga por ter sido "boa memória" do PÚBLICO, bem como de estímulo para que ele, e demais leitores, ajudem o jornal a não se esquecer do que escreve; outra de apelo aos jornalistas para que, sempre que alguém vem à praça pública anunciar isto ou prometer aquilo, anotem nas suas agendas a necessidade de, passados os prazos adequados, irem ver o que é que aconteceu de facto. Pedir contas do que se promete aos cidadãos - algo que é feito quase sempre com a cumplicidade (mesmo bem intencionada) dos "media" -, é uma responsabilidade indeclinável da comunicação social. Além de que ajuda à sua maior ou menor credibilidade.

A leitora Bárbara Mesquita mostrou-se desagradada com o facto de o PÚBLICO se ter associado à Rádio Renascença para a distribuição do CD "Sons com História", dedicado à recente visita do Papa João Paulo II a Fátima. Duvidando da "relevância informativa" daquele documento e até da sua imparcialidade, por estar ligado a uma "emissora católica", a leitora considera "inadmissível que um órgão de comunicação social independente de orientações partidárias ou credos religiosos possa ser 'cúmplice' desta produção".

O director do PÚBLICO esclarece que a edição do CD "foi da responsabilidade da Rádio Renascença" e o jornal apenas serviu de veículo à distribuição, sendo certo que "só os leitores que o desejassem o compravam" - a sua aquisição implicava um pagamento à parte. Mais considera José Manuel Fernandes que esta iniciativa "não compromete o jornal com a orientação editorial da Rádio Renascença", como também não sucedeu no passado em relação a outros CD's distribuídos com o jornal e produzidos por entidades exteriores.

É claro que o facto de um produto ser distribuído por um jornal de algum modo o co-responsabiliza. Não é indiferente, do ponto de vista dos projectos editoriais, servir de veículo à venda de faqueiros, de cassetes pornográficas, de cupões de compra num supermercado ou de bons exemplares da literatura. A imagem de um jornal (e a sua cumplicidade com certo tipo de leitores) também se reflecte nas promoções comerciais que faz, mesmo tratando-se de produções exteriores.

Neste caso, contudo, não se julga censurável a iniciativa do PÚBLICO. Independentemente de aspectos confessionais, o dito CD pode ser um documento relevante sobre uma visita que teve a sua importância histórica, como o testemunha a vastíssima cobertura informativa que requereu da generalidade dos "media" - entre eles o PÚBLICO. E fazer a cobertura não significa estar de acordo ou exaltar (embora, nesta situação concreta, tenha havido excessos em numerosos relatos mediáticos). A própria Rádio Renascença, sendo católica, é também um órgão de informação geral com provas dadas e com uma dinâmica jornalística inquestionável. Tudo pesado, e não esquecendo nunca que o CD era de aquisição facultativa, não parece uma iniciativa despropositada.

A coluna do provedor do leitor não será publicada durante o mês de Agosto mas o jornal continua a sair er os leitores continuam a lê-lo. Assim, havendo que dizer, podem os interessados continuar a enviar os seus comentários, críticas ou reclamações, que a todas se tentará dar seguimento a partir de Setembro. Boas férias!

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