Textos e
Contextos
Por JOAQUIM FIDALGO
Domingo, 23 de Julho de 2000 Diz
o Livro de Estilo do PÚBLICO, a páginas 51: "No PÚBLICO não se faz
discriminação sexual ou racial. A cor da pele do suspeito de um crime nunca deve merecer
relevância noticiosa, salvo quando subsistirem óbvias implicações raciais".
E mais diz, pouco à frente": "Ninguém deve ser qualificado pela sua origem
étnica, naturalidade, confissão religiosa, situação social, orientação ou
preferências sexuais, deficiências físicas ou mentais - excepto quando essa
qualificação for indispensável à própria informação". Exemplifica-se depois
onde se quer chegar: "Deve prevalecer a equidade de tratamento: se não é curial
referir que o assaltante X tem olhos azuis, é algarvio e gosta do Benfica, por que razão
é preciso dizer que é "cabo-verdiano" ou "de etnia cigana", por
exemplo? Em síntese: a raça (...) não é relevante, não se menciona; se se menciona,
tem de se justificar."
Será útil recordar estes princípios numa semana particularmente agitada em matéria
de segurança e em que a generalidade da comunicação social (PÚBLICO incluído) nem
sempre se preveniu contra as conotações raciais que, mesmo involuntariamente, deixou
passar para a opinião pública a propósito de alguns crimes.
É uma daquelas situações que, de tão banalizada no discurso dos media ou nas
conversas informais de todos nós, já nem se estranha: diz-se com a maior das
naturalidades que o assaltante era "um negro" ou era "de etnia
cigana", como se essas características acrescentassem algo de relevante à notícia.
E assim, subliminarmente, de modo distraído e sem intenções racistas, vai-se de facto
reproduzindo no falar comum uma visão discriminatória, propícia à manutenção de
preconceitos baseados na cor da pele.
É evidente que, nalguns casos de insegurança, pode haver, "a priori" ou
"a posteriori", implicações de ordem racial. Aí, uma informação competente
e séria não deve coibir-se de abordar a questão, até porque a solução dos problemas
passa também pelo seu completo conhecimento e por um diagnóstico rigoroso. Não terá,
contudo, sido o caso de algumas das situações esta semana relatadas na imprensa - ou, a
haver implicações raciais, elas não foram suficientemente explicadas.
Mais do que julgar o que se passou, importa alertar para que se redobrem as atenções
nesta matéria. Isso mesmo fez um leitor que se dirigiu ao provedor (invocando o Livro de
Estilo do PÚBLICO), como também fizeram os próprios jornalistas da casa, na sua
reunião semanal de análise crítica do jornal que produzem. Ou seja: o preceito não
está esquecido, convém apenas que se mantenha vivo na lufa-lufa das rotinas quotidianas.
Mesmo quando se está a remar contra a maré porque "todos fazem assim" (ou
sobretudo por isso...), é importante insistir.
Em poucos casos será tão óbvia a responsabilidade dos media na manutenção ou
alteração de uma certo tipo de linguagem, que configura uma certa visão do mundo - e
certos comportamentos.
Mudando de assunto: se há motivo frequente invocado pelas figuras públicas para se
queixarem dos jornalistas, é o da citação de declarações "fora do
contexto". Não que muitas vezes isso não passe de mero expediente para se desdizer
o que se disse antes, ou então para se temperar o que se afirmou de modo contundente mas
sem real consciência de repercussões posteriores. Exemplos não faltam por aí e as
costas dos jornalistas lá vão crescendo em largura à medida das necessidades de quem
precisa de acautelar uma certa imagem pública...
Citar "fora do contexto" é uma falha mais subtil do que citar
incorrectamente, por exemplo ao publicar uma entrevista. Nesta situação, o problema
advém da necessidade de reduzir a uma ou duas páginas de jornal uma conversa que, por
vezes, se prolongou por horas e nem sempre se gravou. Por mais escrupuloso que se seja,
há sempre muitas ideias que se sintetizam ("não foi bem isso que eu disse",
protestam os entrevistados), como há muitas frases que ficam de fora ("cortam sempre
as partes mais interessantes", queixam-se tantos). Mas, mesmo que a entrevista saia
irrepreensível, é frequente haver, depois, outros meios de comunicação que reproduzem
partes. Normalmente, partes curtas e "fortes". E lá vem o problema da citação
incompleta ou "fora do contexto".
Disso se queixou ao provedor o leitor Miguel Sousa Tavares: algumas citações
apresentadas na rubrica "Diz-se" do PÚBLICO de 19/7, e retiradas de uma
entrevista publicada na revista "Elle", teriam sido "deliberadamente
amputadas da sua continuação para produzirem um efeito inverso" àquilo que ele
afirmara. Perguntando-se se é caso "de distracção, incompetência ou má
fé", acrescenta Miguel Sousa Tavares: "As citações são uma coisa muito
delicada, pois com grande facilidade se põe uma pessoa a dizer o contrário do que
efectivamente disse".
"Frases soltas são sempre redutoras", concorda o director do PÚBLICO, José
Manuel Fernandes. As frases diariamente recolhidas no "Diz-se" costumam ser
curtas e "não podem dar todo o enquadramento, mas não devem deturpar nem significar
o inverso". Concretamente sobre as citações em causa, José Manuel Fernandes admite
alguma insuficiência de enquadramento; mas, num dos casos, concorda que a frase original
surge claramente truncada "e engana". Dá, por isso,"a mão à
palmatória" por causa do "lapso involuntário".
O erro, na verdade, é óbvio. A citação atribuída a Miguel Sousa Tavares rezava
assim: ""Não aguento, vomito, o peditório da mãe-trabalhadora-dona-de-casa,
da mulher-vítima. Não percebo porque é que existem." Ora, por muito peculiares que
possam ser as opiniões deste jornalista sobre as mulheres, vê-se mal que se interrogasse
sobre a simples existência da "mãe-trabalhadora-dona-de-casa"... A existência
que o conhecido colunista questionou foi outra, como se pode constatar na entrevista:
"Não aguento, vomito, o peditório da mãe-trabalhadora-dona-de-casa, da
mulher-vítima. Não percebo porque é que existem Comissões para a Igualdade e quejandos
que só se ocupam das mulheres, quando os desgraçados dos africanos estão aí a ser
explorados, quando há aqui e agora um mercado de escravos de que ninguém fala. Já dei
para o peditório das mulheres...".
Outra citação de Miguel Sousa Tavares era esta: "Uma vez, uma amiga minha
disse-me que eu gostava de mulheres, mas não das mulheres". Em sua opinião, citar
apenas isto coloca-o, implicitamente, a concordar com o tal diagnóstico da amiga. Ora, na
entrevista, ele continuava com uma frase que, em seu entender, apontava para diagnóstico
inverso. Eis a citação integral: "Uma vez, uma amiga minha disse-me que eu gostava
de mulheres, mas não das mulheres. Curiosamente, nesta fase da minha vida, verifico que
dos meus maiores amigos, cinco ou seis são mulheres, com quem tenho um grau de intimidade
e de exposição que não consigo ter com os meus amigos homens".
Que diz mais do que a citação original, diz. Que acrescenta algo de novo à ideia
anterior, também. Dirá o inverso? O leitor que julgue, pois agora tem a frase inteira.
Para o provedor, o que está em causa não é discutir a bondade ou maldade das opiniões
de Miguel Sousa Tavares, mas tão-só o seu direito a que as frases que lhe são
atribuídas estejam correctas na letra e no espírito - ou seja, não amputadas dos
elementos necessários á sua plena compreensão. É um direito inquestionável, que deve
ser respeitado. E quem porventura não concorde com o que ele diz até fica mais à
vontade para o contraditar, pois já não há dúvidas sobre se a frase estava incompleta
ou descontextada.
Contactos do provedor do leitor:
Cartas: Rua João de Barros, 265 - 4150-414 PORTO
Telefones: 22-6151000; 21-7501075
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