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Só as Más Notícias São Boas?
Por JOAQUIM FIDALGO
Domingo, 16 de Julho de 2000

Há tempos, a propósito de títulos de primeira página, Vicente Jorge Silva fazia uma pertinente reflexão no "Bloco de Notas" que semanalmente assina no "Diário de Notícias". Discordando daquele jornal e do PÚBLICO por terem, no mesmo dia, desvalorizado um acontecimento marcante e "positivo" - o acordo de harmonização fiscal na União Europeia -, em favor de manchetes mais "negativas" sobre assuntos domésticos, escrevia: "Isto é péssimo para a credibilidade dos media e parece justificar a suspeita de que mesmo os jornais mais fiáveis e rigorosos preferem sistematicamente as notícias negativas às positivas, como se só as más notícias fossem as boas (...)".

É a proverbial apetência da comunicação social pelas desgraças e que, tendo alguma justificação no facto de ser mais noticiável (porque menos previsível, porque fora do "normal") uma excepção do que uma regra, a leva por vezes a meter tudo no mesmo saco, passando por cima de acontecimentos interessantes só porque neles não espreita a gota de sangue, a suspeita de escândalo, a declaração contundente, a polémica... Ou só porque não é "contra" - contra o governo, contra a câmara, contra o partido, contra o patrão, contra a escola, contra a polícia, enfim, contra.

Vem isto a propósito do que aqui se falou no passado domingo sobre acompanhamento noticioso de modalidades desportivas menos conhecidas do grande público - e sobre a falta de "picante" que por vezes ajudará a explicar o desinteresse dos jornais.

A chamada de atenção aqui feita caiu fundo, como se imaginaria, entre praticantes ou aficionados do motociclismo. Vários escreveram ao provedor, em tom comum de apelo: que o PÚBLICO não se esqueça da modalidade e, ao menos por alturas das grandes provas nacionais, dê notícia.

Eduardo Campos, por exemplo, recusa a ideia de que "o motociclismo deva estar circunscrito às revistas da especialidade". Filipe Moreira assevera que o motociclismo "é uma modalidade em franca expansão" e acrescenta, conhecedor dos mecanismos que levam os "media" a seleccionar os acontecimentos da sua agenda: "O facto de os circuitos não encherem (ainda) quando há uma prova do Campeonato Nacional de Velocidade não significa que não haja gente muito interessada em ler os resultados das provas". Hugo Trovão Mota não destoa: "É preciso deixar que o motociclismo e outros desportos que não o futebol tenham algum lugar nas vossas [do PÚBLICO] páginas. Quem sabe um dia não teremos um campeão do mundo de velocidade?"

Mais curiosa, entretanto, é a carta de um leitor ligado a outra modalidade - a aviação ultraleve - e que, à boleia do motociclismo, também se dirigiu ao provedor em defesa da sua dama. Mostrando um enorme desapontamento por ter sido praticamente ignorada pela imprensa a recente Volta ao Norte em aviões ultraleves (que mobilizou 36 aparelhos, muitas dezenas de pessoas e um ror de atenções por onde passou), diz Paulo Lemos da Costa: "É surpreendente como, devido a não termos acidentes, ficamos no escuro perante a maioria dos meios de comunicação. Chegámos a pensar pegar fogo a umas asas antigas que estavam em Espinho, de forma a interessar os 'media', que certamente lá iriam todos para poder dizer que a modalidade é perigosa e que os pilotos são incapazes".

Se tivesse havido desgraça, ou até simulação de desgraça, lá teria havido notícia. Assim, como correu tudo muito bem, nada se soube. E nem se pode dizer que uma volta ao país em aviões seja um acontecimento propriamente rotineiro. É, porventura, um daqueles casos que mereceria uma reportagem pontual, uma história, uma referência. E os leitores passariam a conhecer um novo desporto que por estas bandas se pratica. Mesmo sem motivação "negativa".

"Negativo" se pode considerar o anúncio feito esta semana, em título de primeira página do PÚBLICO, a partir de uma entrevista do ministro Pina Moura: "Gasóleo vai ser mais caro". Quem acompanhou o assunto terá notado como, logo nessa manhã, as rádios multiplicaram a frase e como, em contrapartida, Pina Moura apareceu logo a explicar que não dizia exactamente isso na entrevista.

No mesmo sentido se queixou o leitor José Rosa: "Ouvi na rádio a notícia e achei incrível, depois da promessa de Guterres, Pina Moura ter a lata de anunciar aumento do gasóleo". Só que, quando foi ler o jornal, encontrou coisa diferente. E comenta: "Ou já não sei ler, ou o que resulta da entrevista não é o título do PÚBLICO! Em que ficamos? Qual é o papel de um meio de comunicação como este jornal? Enganar e promover as vendas com ilações falsas de respostas fora do contexto? (...) Bem bastam as asneiras reais e diárias do Governo e da Oposição, não é precisa a ajuda do PÚBLICO para maior asneira."

O director do jornal, José Manuel Fernandes, defende o título, considerando-o "incontornável" face às declarações do ministro - "depois de lida toda a entrevista, parece-me claro que, para o grande público, a maior novidade é a intenção de aumentar mais o gasóleo do que a gasolina" - e recusando que ele possa ser olhado como sensacionalista. "O título de primeira página", acrescenta, "referia-se a uma alteração de política fiscal que vai tornar o gasóleo mais caro, pelo menos em termos relativos, e quase seguramente em termos absolutos. Por isso se escrevia 'Gasóleo vai ser mais caro' e não 'Gasóleo vai aumentar'. Esta segunda formulação tem uma conotação muito mais imediatista do que a escolhida e, se tivesse sido adoptada, poderia realmente abrir campo ao tipo de comentários feitos pelo leitor".

Salvo melhor opinião, voltamos a enredar-nos aqui nalgum jogo de palavras que, explicando a rama do problema, não o toca no fundo. E o fundo qual é? É a reacção natural do leitor que depara com um título daqueles na primeira página do jornal: se o ministro diz que o gasóleo "vai ser mais caro", é porque está prestes a chegar um aumento de preço... O "quando", aqui, é fundamental. E nem a subtil distinção de José Manuel Fernandes entre "vai ser mais caro" e "vai aumentar" desdiz o essencial da questão, pois todos sabemos que aquela nunca seria notícia de primeira página se se acrescentasse que o gasóleo subirá de preço, sim, mas só em 2001 ou 2002. Não seria actual, como compete às notícias, nem seria grande novidade: tudo será mais caro daqui a um ou dois anos...

O que na entrevista havia de novo, realmente, era o propósito governamental de alterar o tratamento fiscal do gasóleo, com o previsível agravamento de custo que tal significará - mas no futuro, não agora. Era isso que sugeria o título de primeira página? Não. Embora correcto na letra, criava nos leitores uma impressão mais negativa, mais alarmista, do que os factos continham.

"Um título nunca conta tudo. Não pode mentir nem enganar, o que não sucedia neste caso. E pode chamar a atenção dos leitores? O mais possível. Isso não é pecado", comenta o director do PÚBLICO. Claro que não é pecado chamar a atenção dos leitores - e aqui chamou-se. Claro que não se deve mentir - e aqui não se mentiu. Claro que não se deve enganar - mas aqui, entende o provedor, enganou-se. Induziu-se em erro. Não tanto pelo que literalmente se disse mas pelo que, não se tendo dito, permitiu pensar-se. E, por muita volta que se dê, de facto todos presumimos, ao ler aquele título, que o gasóleo não tardaria nada a encarecer. Ou, então, que o jornal estava a meter o pé na poça...

Registe-se, entretanto, o bom trabalho jornalístico feito pelo PÚBLICO três dias depois, explicando em pormenor, com grande cuidado de contextualização e de comparação com outros países, o futuro expectável do preço dos combustíveis.

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