| Primeira Página em Foco Por JOAQUIM FIDALGO
 Domingo, 25 de Junho de
        2000
 Os títulos, sobretudo os de primeira página e de manchete (em regra
        muito curtos, afirmativos e fortes - sem que, por isso, fiquem necessariamente
        sensacionalistas), nunca dizem tudo. Por vezes até dizem bem pouco da complexidade da
        matéria a que se referem. São, assim, uma clara zona de risco, como já aqui se
        comentou, e não por acaso: são os títulos de primeira página que mais chamam a
        atenção de leitores e não leitores, são eles que mais dúvidas suscitam e
        reclamações originam, são eles que em alguma medida "jogam" a imagem pública
        do jornal.  Não dizendo tudo, é bom que essa meia dúzia de palavras que serve de porta de
        entrada à leitura do texto diga o essencial. E, obviamente, que o que diz esteja
        suportado no escrito subsequente. Se possível, que não diga de mais nem de menos - sendo
        certo que quase sempre dirá algo menos. Daí a utilidade dos antetítulos, menos
        visíveis mas importantes para contextar a informação, situar os factos no espaço e no
        tempo, identificar pessoas ou situações, enfim, para suprir algumas das insuficiências
        informativas causadas pelo jeito sempre tão sintético dos títulos propriamente ditos. E
        depois, claro, temos o texto.  Julgar uma notícia só pelo título pode, entretanto, induzir em erro. Aquilo que não
        parece nada evidente, ou até parece asneira, por vezes é esclarecido quando se lê o
        texto que lhe deu origem.  Veja-se o exemplo apresentado pelo leitor Luis Melo: quando leu, na primeira página do
        PÚBLICO, a manchete "Portugal ocultou Outão à UE" (a propósito do complicado
        processo da co-incineração), entendeu que se estava "a distorcer a
        informação". E diz, na sua queixa ao provedor: "Bastava um mínimo de pesquisa
        séria para os jornalistas do PÚBLICO compreenderem que a informação dada por Portugal
        à UE há um ano (ou mais) não mencionava Outão porque o local escolhido na altura era
        Maceira".  Ora, se formos ler o texto da notícia, é exactamente isso que se lá diz. E não se
        diz só isso, diz-se mais. Citando: "De facto, quando as autoridades portuguesas
        respondem à Comissão [Europeia], Outão podia não ser uma hipótese, porque havia dois
        outros locais apontados, mas tinha sido durante dois anos e voltou a sê-lo depois".  Ou seja: como resulta claro do texto (e era, aliás, apontado logo no antetítulo da
        primeira página), a questão está em o Governo ter dito para Bruxelas que a hipótese
        Outão "nunca" tinha sido considerada. Este "nunca" é que mente,
        pois, como explicam as jornalistas Ana Fernandes e Eunice Lourenço, responsáveis pela
        notícia, Outão foi hipótese para a co-incineração até ao anúncio da opção por
        Maceira e Souselas, e voltou a sê-lo mais recentemente. Se o Governo tivesse apenas dito
        que Outão "não" era hipótese, teria falado verdade; dizendo que
        "nunca" fora hipótese, ocultou à UE uma etapa do processo. Exactamente o que
        dizia o título da manchete, que assim aparece justificado.  Mas nem sempre os textos esclarecem eventuais dúvidas suscitadas pelos títulos. Pelo
        contrário, às vezes até as adensam. Veja-se a manchete da última quinta-feira, 22/6,
        onde é citada uma frase alegadamente proferida pelo primeiro-ministro, António Guterres,
        numa entrevista ao PÚBLICO: "Antes de mim não existia política cultural em
        Portugal".  A frase é forte, não se duvida da sua exactidão - pois aparece entre aspas, ou seja,
        colocada na boca de Guterres -, e apetece ir logo à entrevista ler o resto, ver em que
        contexto isto foi dito. Chega-se ao texto e lê-se assim, em discurso directo do
        primeiro-ministro: "... um aumento [de verbas] mais espectacular, revelador, aliás,
        de que não existia política cultural em Portugal". A frase não é exactamente a
        mesma: falta o "antes de mim".  Foi esta diferença que causou "perplexidade" a Alberto Arons de Carvalho e o
        levou, na qualidade de leitor do PÚBLICO, a interpelar o provedor. Em sua opinião, o
        facto de se ter acrescentado o "antes de mim" à frase citada na manchete
        "não é menosprezável nem inocente". "Conhecendo António Guterres há
        quase trinta anos, sei que o seu estilo está nas antípodas do egocentrismo que
        transparece da frase construída para título do jornal", comenta Arons de Carvalho,
        acrescentando que não se pode "pôr de lado o rigor (...) quando se trata de
        transcrever frases alheias".  Justificando a escolha que fez para a manchete do PÚBLICO deste dia, explica-se o
        director-adjunto Adelino Gomes: "A expressão 'antes de mim' não consta realmente da
        resposta do primeiro-ministro. E por essa razão aceito que se possa considerar abusivo
        acrescentá-la a uma citação autenticada pelas aspas". E lembra como há maneiras
        de tornear a dificuldade frequente de transpor para discurso escrito o que foi recolhido
        em discurso oral : "Uma boa tradição do PÚBLICO ajuda-nos, em casos destes, a
        conciliar a exigência do rigor com a necessidade de ser conciso e apelativo: bastaria ter
        retirado as aspas e colocado a mesmíssima frase em itálico".  Admitindo a sua responsabilidade no erro, que prefere considerar "lapso
        técnico", Adelino Gomes discorda, contudo, da interpretação que o leitor Arons de
        Carvalho dá à opção tomada. Em sua opinião, "todas as respostas da breve
        entrevista não fazem outra coisa que não dizer o mesmo que está na manchete por outras
        palavras". Ainda que reconheça que "o primeiro-ministro fala quase sempre no
        plural", o director-adjunto do PÚBLICO contrapõe: "Mas [Guterres] não deixa
        de apontar com clareza quem está no comando da política que tão tonitruantemente
        elogia: ele próprio".  Não custa dar razão a Adelino Gomes no plano das interpretações mas também se
        impõe dar razão a Arons de Carvalho no plano dos factos puros e simples. Aliás, o
        problema terá surgido precisamente daqui: a manchete do PÚBLICO deslocou uma ideia do
        terreno das interpretações (perfeitamente legítimas, porque fundamentadas no tom geral
        da entrevista) para o terreno dos factos objectivos (onde o rigor de transcrição não
        permite grande margem de manobra). E, como acima ficou reconhecido, este até era um passo
        desnecessário, pois havia outras maneiras de tornear o problema. Quando atribui
        taxativamente a Guterres uma expressão que ele de facto não proferiu, o jornal perde em
        alguma medida a razão que tinha ao interpretar as declarações do primeiro-ministro como
        interpretou. Vai mais longe do que devia.  Questão miúda? Pormenor de estilo? Talvez não. Em tudo, mas sobretudo em política,
        o estilo (genuíno ou fabricado) conta: pode ser muito significativo o "como" se
        dizem as coisas, pois pode indiciar um certo carácter, uma postura, um tipo de
        relacionamento, que tem peso na opinião pública. Para além de outros aspectos, todos
        concordaremos que a substituição de Cavaco Silva por António Guterres no poder, em
        1995, também passou por questões de estilo - no modo de governação, no modo de
        apresentação das coisas, no modo de relação com as pessoas. Dizer "antes de mim
        não havia..." é diferente de dizer "antes deste Governo não havia..." ou
        "antes do PS não havia...". A expressão tem um inegável fundo de
        auto-glorificação pessoal, que até nos vem da História ("Depois de mim o
        dilúvio", sentenciava Luis XV, não era?...).  Dito isto, claro que podemos interpretar. E podemos até sugerir que Guterres não
        disse "antes de mim" só por pudor, ou porque não é o seu jeito de falar, ou
        porque prefere os plurais mais ou menos majestáticos, mas que, em boa verdade, foi isso
        que pretendeu transmitir. Ele que até é o líder do Governo. A estas interpretações
        tem, naturalmente, de se sujeitar, pois elas alicerçam-se no tom geral da entrevista
        publicada. Mas, em contrapartida, cabe-lhe o direito de só ver entre aspas, colocadas na
        sua boca, as palavras que realmente proferiu.  P.S. Prestes a concluir-se este texto, chegaram ao provedor novas críticas sobre uma
        outra manchete do PÚBLICO desta semana ("Judiciária investiga 'saco azul' do
        PS", edição de 21/6), apontando-a como sensacionalista e enganosa, face aos textos
        que a suportavam. Quererão mais leitores dizer o que pensam?  
          
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