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Paixão e Razão - Parte Dois
Por JOAQUIM FIDALGO
Domingo, 11 de Junho de 2000

Numa entrevista que esta semana deu á SIC, o cientista António Damásio entendeu colocar, de modo muito acessível, alguns "pontos nos is" relativamente a leituras apressadas, ou demasiado simplistas, das suas fascinantes descobertas sobre a relação essencial entre razão e emoção. Embora seja hoje claro que há uma presença estrutural, e portanto uma influência permanente, das emoções nos nossos processos racionais - designadamente nos processos de tomada de decisão -, isso não significa, como explicou Damásio, que devamos dar livre curso às emoções e decidir, como era costume dizer-se, "de cabeça quente" ou só "com o coração". Que as emoções estão lá (e não apenas as do momento, mas todo o património acumulado da nossa "história emocional"), é um facto; que devemos ter boa consciência dessa presença e dessa interacção, sem dúvida; mas que tal não nos desobriga de atitudes reflectidas e de cuidadas ponderações quando se trata de tomar uma decisão, também é verdade. As emoções enriquecem e completam estes processos - não são alibi ou desculpa para escolhas arbitrárias ou mal amadurecidas.

Assim também no jornalismo, se se me permite a comparação. Retomando o assunto de futebol aqui tratado na última semana - e que merecerá algum desenvolvimento, a atentar nos comentários e nas dúvidas dirigidas ao provedor por alguns leitores -, diria, para que não fiquem dúvidas: ter uma "paixão" clubística é perfeitamente legítimo, no plano pessoal, mas não desobriga (antes pelo contrário...) um jornalista da sua "razão" profissional, que se traduz numa exigência de rigor, numa postura de independência, numa preocupação de objectividade. Isso é válido para todos os textos que lidam com os factos e suas interpretações, mas é-o também para textos de análise e comentário onde as opiniões próprias têm algum cabimento. Como, em adequada síntese, dizia Mário Mesquita numa entrevista ao "Diário de Notícias" (19/10/98), a propósito da actividade jornalística, "não é possível separar razão e emoção (...) mas é possível combiná-las em diferentes proporções".

E há, efectivamente, quem as combine de modo bem diverso. Isso mesmo sugere o leitor Carlos Fonseca quando, a propósito do caso aqui analisado no último domingo, diz, em tom elogioso, que não sabe, até hoje, quais as preferências clubistas de alguns dos jornalistas cujos textos lê regularmente no PÚBLICO ("nem tenho que saber", esclarece), independentemente de concordar ou discordar da forma como abordam os assuntos. Mas, noutros casos, sabe bem quais são essas preferências, pois elas não passam nada despercebidas. Claro que a questão importante não está em conhecer ou desconhecer as simpatias clubísticas de um jornalista; está, sim, em ver até que ponto essas simpatias interferem ilegitimamente com a sua postura profissional e invadem os seus textos, tolhendo-lhe a distância crítica, a autonomia de pensamento, o rigor de análise.

Será que este assunto "é daqueles que não têm solução", como, pessimista, afirma o leitor Rui G. Moura? Quero crer que não. Pelo menos, o facto de ele ser complexo não deve levar-nos a desistir de ir aperfeiçoando as coisas.

Nos últimos anos, foi-se tornando muito popular, em certos meios, a ideia de que a objectividade é uma utopia, é um mito impossível para o jornalismo, pois os jornalistas, tal como todas as pessoas, têm as suas simpatias, as suas emoções, as suas paixões - ou seja, a sua subjectividade, que inexoravelmente deixa marca em tudo quanto escrevem. Segundo esta teoria, não vale a pena "fazer de conta" que se pode ser imparcial, isento, objectivo; melhor é assumir que se é sempre subjectivo (mesmo quando se diz que não se é...) no tratamento das matérias e fazê-lo às claras, com todas as letras. Vai daí, esbate-se a diferença entre o jornalista e qualquer outra pessoa que escreve um texto num jornal. Como se esbate a distinção entre o relato ou a interpretação de factos e a pura expressão de opiniões.

Os jornalistas também são pessoas, é bem verdade. Têm preferências, emoções, simpatias, opções, referências políticas, culturais e outras. São homens e mulheres, não são superhomens nem supermulheres. Nem anjos assépticos. Mas, no que aqui nos traz, não são, de facto, exactamente iguais às outras pessoas. Nem podem, nem devem sê-lo. Precisamente porque são... jornalistas. Isso não é ser mais nem menos; é ter um modelo de actuação próprio e justificado pelas especificidades do seu ofício e do seu papel na sociedade. É estar obrigado a responder a um conjunto de exigências profissionais - que se adquirem pelo estudo, pelo treino, pela preparação técnica, pela reflexão ética, pelo compromisso deontológico, pela crítica e auto-crítica no espaço colectivo das redacções, pela atenção aos destinatários finais da informação - nas quais se inclui, obrigatoriamente, um esforço de objectividade, de rigor, de isenção. Uma coisa é saber que não há objectividade em estado puro; coisa bem diferente é desistir de uma postura de busca permanente e genuína dessa objectividade. Não interessa apenas o resultado; interessa também, ou sobretudo, o processo para lá chegar, pois só quanto a este o jornalista pode dar garantias de que fez tudo o que podia e devia.

Volto a Mário Mesquita e a um excelente texto ("Em louvor da Santa Objectividade") que publicou, já este ano, no primeiro número da novel revista "JJ - Jornalismo e Jornalistas", dirigida por Fernando Correia e propriedade do Clube de Jornalistas. "A recusa da 'doutrina da objectividade' baseia-se, entre outros aspectos, na afirmação de um direito à subjectividade do jornalista, enquanto investigador, narrador e autor. Essa afirmação da subjectividade do jornalista não é incompatível com a 'atitude de objectividade' que é própria do jornalismo e não se confunde com nenhuma doutrina ou dogmática tendente a confundir uma postura de questionamento e interpelação com um conjunto de rotinas profissionais ou de formas retóricas", diz Mário Mesquita. Continuando: "No jornalismo, tal como no conhecimento científico, os factos não existem independentemente de quem os apreende. Mas isso não invalida, antes pressupõe uma 'conduta de objectividade', para recorrer à expressão de Paul Ricoeur acerca da história". E noutro passo: "O 'contrato de recepção' que o jornalista implicitamente celebra com o leitor pressupõe uma 'conduta de objectividade' que o distinga do ficcionista, do actor de teatro e de cinema, do relações públicas e do publicitário. Sem esse compromisso com o 'real', o jornalismo destrói a razão de ser da sua existência e dilui-se no vasto oceano dos outros géneros de comunicação."

É este, afinal, o quadro de referência em que se inscreve o trabalho jornalístico regular. Não é nada de muito especial - ou é tão especial como especiais são os enquadramentos técnicos, éticos e deontológicos de outras profissões com forte responsabilidade social - mas não perde em ser lembrado. Passa muito por aqui a maior ou menor credibilidade dos jornais (e rádios, e televisões) que temos. Passa muito por aqui a imagem de competência e seriedade (ou falta delas) dos próprios jornalistas. Passa muito por aqui a justa reivindicação dos leitores de serem "bem servidos", de serem tratados como pessoas com pensamento próprio, de receberem aquilo que os profissionais deste ofício se comprometem, explícita ou tacitamente, a dar-lhes.

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