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Das Paixões Privadas à Exigência Profissional
Por JOAQUIM FIDALGO
Domingo, 4 de Junho de 2000

Vamos ao futebol. A altura até não parece má: nesta espécie de intervalo entre a emoção fortíssima das últimas competições domésticas (Campeonato e Taça) e a expectativa de novas vibrações por conta do Europeu que aí vem, talvez se possa olhar o assunto com um pouco mais de calma.

Terreno de paixões, logo de potenciais excessos, e terreno que entre nós movimenta milhões - milhões de contos, milhões de adeptos e simpatizantes, milhões de páginas de jornal, milhões de palpites e opiniões, milhões de horas de conversa televisiva... -, o futebol cria polémicas como nenhum outro jogo e nenhum outro espectáculo. O próprio PÚBLICO sabe disso alguma coisa: elaborado diariamente por dois núcleos redactoriais (Lisboa e Porto) fortes e com algum grau de autonomia, embora convergentes para um único jornal, foi precisamente no futebol que criou, durante os primeiros tempos de vida, algumas difíceis polémicas internas, onde se misturavam simpatias clubísticas e sensibilidades regionais, num caldo de suspeições mútuas que se via mal como ultrapassar. O andar do tempo, o aprofundar da convivência e do conhecimento recíprocos, o acentuar de critérios de rigor e competência profissional - os únicos que constituem a adequada plataforma de entendimento entre oficiais do mesmo ofício, independentemente das suas preferências pessoais - acabaram por permitir uma equilibrada convergência de esforços. De que faz parte, naturalmente, a salutar expressão de opiniões diversas nos textos a isso destinados.

O próprio provedor já uma vez ou outra recebeu breves comentários de leitores questionando este ou aquele aspecto das páginas do desporto. Mas, por via de regra, tratou-se da apresentação de opiniões contrárias às opiniões deste ou daquele jornalista, motivo pelo qual nunca se encontrou oportunidade clara de abordar o tema.

Ela surgiu agora, com um repto muito directo do leitor António Goucha Soares. Assim: "Durante a temporada competitiva que agora terminou, tive a oportunidade de ler os comentários semanais de Manuel Queiroz. Bem escritos, demonstrando conhecimentos seguros sobre a matéria, mas facciosos. Se a ninguém é negado o direito de ter as suas tendências clubísticas, parece-me mais duvidoso que se devam veicular essas mesmas inclinações nos balanços da jornada que se escrevem semanalmente num jornal de referência". Mais especificamente, a propósito do comentário publicado no dia a seguir à finalíssima da Taça de Portugal, diz o leitor: "Penso que desta feita o autor claramente se excedeu no seu habitual facciosismo. Não é um comentário de jornalista, mas sim de opinionista (...)". E cita, entre exemplos concretos, a sugestão do jornalista de que o FCPorto teria a melhor equipa, mesmo tendo perdido o campeonato, ou a sua afirmação de que o Estádio Nacional "só é Nacional para a final da Taça".

Manuel Queiroz, que é também editor do Desporto no PÚBLICO, responde que as acusações de "facciosismo" a jornalistas que escrevem opinião nos jornais são frequentes mas muitas vezes "não se traduzem em nada de concreto". Além disso, ora são feitas por simpatizantes de um clube, ora por simpatizantes de outro, conforme o texto é mais favorável a este ou àquele.

Sobre o seu caso específico, comenta: "Tenho um clube do coração - o FC Porto - mas nunca senti que isso me tolhesse as ideias. Entra a paixão (clubista) e a razão (profissional), há uma mediação de treino (jornalístico) e de conhecimentos que são decisivos para a credibilidade dos textos. É isso que eu procuro, com certeza com muitos erros, mas tentando chegar o mais perto possível da verdade quando se trata de factos. E procurando ser tão equidistante quanto possível na opinião.".

Quanto aos exemplos referidos, insiste que, em sua opinião, o FC Porto continua "porventura" (assim escreveu no comentário) a ter a melhor equipa em Portugal, embora outros possam defender opiniões diversas, e que o Estádio Nacional, de facto, só é nacional para as finais da Taça pois, ao contrário do que sucede noutros países, a selecção até costuma preferir jogar nos estádios dos clubes - Luz, Antas, Alvalade -, presumivelmente porque ali congrega mais público e mais calor humano dos aficionados.

Não cabe aqui, como já noutras ocasiões de disse, discutir opiniões (sejam as dos colunistas convidados, sejam as dos jornalistas da casa, sejam as dos leitores). Deseja-se apenas que elas se apresentem séria e coerentemente sustentadas e, sobretudo, que o jornal encontre em todos os domínios o espaço necessário à expressão da sua pluralidade.

Um "comentário", como os que aparecem regularmente nas secções do PÚBLICO, é um texto de opinião, claramente identificado como tal e assinado. Di-lo o Livro de Estilo: "A opinião em sintonia com a actualidade diária divide-se em três géneros: o editorial, assinado por um elemento da Direcção editorial; o comentário, assinado por um director, editor ou jornalista; e a opinião, assinada por um convidado. Estes três géneros têm como denominador comum a brevidade dos textos, a interpretação clara e incisiva dos factos e, naturalmente, a opinião do autor sobre a matéria em causa".

Pode dizer-se que o "comentário" não é exactamente um texto de opinião livre como o de qualquer colunista, pois tem uma componente de análise e de interpretação dos factos que pressupõe certa preocupação de objectividade. Mas é basicamente um texto de opinião (com a liberdade de discurso que isso pressupõe) e, no caso do PÚBLICO, foi muito para essa direcção que a prática habitual encaminhou os tais comentários à jornada futebolística. Quem os segue constatará que eles são tudo menos o simples dissecar técnico dos jogos da semana ou a descrição burocrática do que se passou. Contendo esses elementos, vão muito para além deles - o que parece legítimo em sede de opinião. Ora uma opinião é sempre parcial, é sempre uma escolha a favor ou contra. Mas nem por isso fica facciosa; ficá-lo-á só se não for adequadamente sustentada, se não passar de um desabafo emotivo, gratuito, banal, sem preocupação argumentativa.

O leitor reconhece os "conhecimentos seguros" de Manuel Queiroz em matéria de futebol. Fica agora a saber, preto no branco, a sua preferência clubística. Se esta interfere explicitamente com aqueles (mesmo contra a sua vontade) quando dá opiniões, é difícil dizer... Ao contrário, é muito fácil presumir que, entre os jornalistas do desporto do PÚBLICO, haverá outras preferências clubísticas. E quem escreve comentários não é sempre a mesma pessoa. Assim, mesmo que haja interferências, vai sendo assegurada alguma diversidade de pontos de vista e de opiniões. Talvez seja o essencial.

Manuel Queiroz pergunta-se se, qualquer dia, os comentários dos jornalistas da área do desporto não passarão a trazer, junto à assinatura, informação sobre o clube da sua paixão. Não parece ao provedor que seja necessário ou desejável chegar aí (já agora, também a assunção pública de outras preferências privadas, como as de partido político ou de confissão religiosa?...) para garantir o jornalismo competente e isento a que todos os profissionais devem obrigar-se. Seria mau sinal. Quando muito, como ironiza Manuel Queiroz, ajudaria o leitor a "ler o texto sem ter o prazer de adivinhar se o autor gosta mais de um clube do que do outro...".

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