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As Novas Artes de Navegar
Por JOAQUIM FIDALGO
Domingo, 28 de Maio de 2000

Pode dar-se o caso de os jornais, na melhor das intenções, estarem a publicar (ou o provedor a receber...) cartas de facto anónimas - ou assinadas com nome fictício, o que para o caso dá no mesmo.

O jornal canadiano "The Globe and Mail" noticiava esta semana que, de acordo com uma recente sondagem de opinião, 85 por cento dos jovens do país com idade compreendida entre os 12 e os 17 anos já navegam regularmente na Internet. O estudo servia também para demonstrar que há uma progressiva (e muito rápida) transferência dos mais jovens do ecrã de televisão para o ecrã do computador - e, neste, em boa parte para comunicar com outras pessoas mais do que para percorrer "sites".

Um dos dados mais curiosos (mas nem por isso demasiado surpreendente, até para nós, portugueses...) da sondagem revelava que um dos grande atractivos desta nova forma de comunicação/socialização entre os "teenagers" é a possibilidade de utilizarem diferentes nomes (e diferentes personagens?) nas trocas de correio electrónico ou nos grupos de conversa - os chamados "chat groups" ou "chat rooms". Uma menina de nove anos, citada pelo jornal, contava como tem oito endereços diferentes e como adora a ideia: "É tão giro, pode-se aparecer com qualquer um destes nomes e ninguém se importa. Toda a gente faz o mesmo". Ela não o dizia explicitamente mas, a avaliar por experiências semelhantes que todos nós conhecemos, com um endereço diferente e um nome diferente nasce também uma idade diferente, uma personalidade diferente, uma criação própria, uma personagem, um "outro" de nós. E não é difícil imaginar como pode ser sedutora (para "teenagers" e não só) a ideia de, em determinados contextos, assumir perante terceiros uma outra identidade, "criar" uma pessoa diversa da que nos habituámos a ser - e poder fazê-lo sem problema, no anonimato, sem que ninguém saiba quem é que verdadeiramente está atrás daquele nome ou daquele endereço marcado com "@".

Foram exactamente algumas destas questões que, de modo mais ou menos directo, atravessaram os debates da reunião anual da ONO (Organization of News Ombudsmen), uma entidade que associa provedores do leitor de todo o mundo - da imprensa, da rádio, e da televisão - e que esta semana assentou arraiais em Montreal. Uma das convidadas para o encontro, a norte-americana Janet Rifkin, chamou a atenção para as novas oportunidades e os novos desafios suscitados pela Internet na comunicação entre as pessoas, e especificamente também no trabalho dos provedores. Aliás, esta professora universitária é, ela própria, um bom exemplo da matéria, pois dirige, na Universidade de Massachusetts, um Centro para a Tecnologia da Informação e Resolução de Disputas que tem a seu cargo o chamado "Online Ombuds Office" - uma espécie de serviço de resolução de conflitos destinado a pessoas e instituições que desejem um mediador "online" para os assistir. O pressuposto é, naturalmente, que muitas das disputas actuais já nascem e se desenvolvem (e eventualmente se resolvem) não por telefone, nem por carta, nem face a face, mas com recurso a esse fabuloso instrumento que é o "e-mail", o correio electrónico. De resto, quem acompanha a secção de "Cartas ao Director" do PÚBLICO verá como tem crescido o número das que, como lá se diz, foram enviadas por "e-mail". E o provedor pode também afirmar que a maior parte do correio que actualmente recebe dos leitores já trocou o carteiro pelo computador.

E... quem escreve essas cartas? São as pessoas que as assinam, dir-se-á. E em princípio serão. Mas podem não ser... Como bem demonstrava aquela menina canadiana, não há nada de mais fácil - e certamente excitante, no caso dela, mas susceptível de uma infinidade de aproveitamentos perversos - do que arranjar uma nova identidade para o correio electrónico: basta ir a um dos muitos servidores disponíveis, que não "moram" em lado nenhum a não ser no espaço virtual cujos nomes de rua são "yahoo", "hotmail", coisas assim, e escolher um nome. Ou dois. Ou oito. Pode, portanto, dar-se o caso de os jornais, na melhor das intenções, estarem a publicar (ou o provedor a receber...) cartas de facto anónimas - ou assinadas com nome fictício, o que para o caso dá no mesmo. E é bem sabido que, por razões óbvias de comportamento ético, de credibilidade e de cautela face a eventuais manipulações, uma carta anónima é, em princípio, desconsiderada por qualquer jornal que se preze (salvaguardam-se, naturalmente, as situações em que o autor da carta é conhecido do jornal, mas o seu nome não se divulga por poder com isto acarretar-lhe algum dano).

Ou seja: tal como sucede com muitos materiais que navegam livremente no ciberespaço, também nos domínios do correio electrónico começa a sentir-se a necessidade de algum tipo de autenticação, de clara certificação de origem, para que não haja equívocos ou enganos ou aproveitamentos sinuosos de uma excelente ferramenta de comunicação rápida entre as pessoas. À cautela, não seria mau que quem escreve para os jornais e deseja ver a sua carta publicada, ou quem deseja apresentar as suas queixas por via electrónica, se habituasse a acrescentar, no final, o nome, a morada real e o número de telefone, para eventual confirmação ou contacto posterior. Este é um mecanismo que tiraria de certo toda a graça aos jogos de personagens que é possível fazer nos tais "chat groups" mas, nas situações mais sérias de apresentação pública de opiniões, parece ser de toda a vantagem.

Outro capítulo em que teve significativo impacto a generalização do uso de correio electrónico (o estrangeirismo "e-mail", por claras razões de facilidade de utilização, já se instalou decididamente no português e não será fácil esconjurá-lo!) prende-se com o factor tempo. Ora, como bem notava Janet Rifkin no encontro mundial de provedores de informação, o tempo é um elemento importantíssimo na gestão de conflitos. Não é que o tempo tudo resolva ou tudo sare, mas é verdade que muitas vezes ajuda: a cabeça esfria, acalmam os ânimos, pensa-se, vêem-se as coisas com outro(s) enfoque(s). A lógica da Internet, pelo contrário, é a lógica da rapidez, do imediato, do "online" mas também do "on time". Vê-se algo e reage-se de imediato, esperando-se também uma resposta imediata - que, por sua vez, foi feita em cima do momento. E o que se ganha em espontaneidade perde-se eventualmente em ponderação, em análise, em cabeça fria. E uma cabeça quente não só não ajuda a ultrapassar conflitos como, pelo contrário, contribui para criar novos... Não é que se advogue um nostálgico regresso aos tempos da vagarosa e demorada carta em papel (que decerto continuará a ter o seu lugar muito próprio, e insubstituível, em determinados contextos), mas é útil tomarmos consciência de como esta pressão do imediato na nossa comunicação com pessoas e instituições requer as suas, digamos, adaptações. E algum tempo, claro, para digerirmos e nos habituarmos a conviver com tanto novo mecanismo que cria tantas novas rotinas.

O reverso da medalha deste recurso tão generalizado e tão fácil a ferramentas de comunicação modernas como o "e-mail" é, já se vê, a abertura à participação. Muito mais gente dá hoje a sua opinião sobre determinados assuntos, muito mais gente troca mensagens com outros, muito mais gente se decide a tomar a palavra num debate, num fórum de discussão, num inquérito, quando antes, mesmo tendo vontade disso, acabava por sucumbir aos pequenos trabalhos do processo: arranjar papel, escrever uma carta, descobrir um envelope, encontrar a direcção, comprar selo, pôr no correio... Hoje é sentar-se ao computador (se é que não se está já lá), escrever e carregar numa tecla, e aí vai a carta para um ou mil destinatários. Mais um instante e já lá está, mais outro instante e já cá está a resposta. Tudo simples, tudo linear, tudo ao momento.

É bom que haja mais gente a participar e a dar os seus contributos para o debate público. Eis uma oportunidade fabulosa que nos é dada pela Internet. Mas o melhor ou pior proveito que consigamos tirar dela, no médio e longo prazo, passa também pela adequada resolução de alguns dos novos desafios por ela colocados. Se assim for, só teremos a ganhar. Se assim não for, temos um problema, pois a expansão da "rede" não vai parar: veja-se os 85 por cento de jovens canadianos, que não são propriamente um caso isolado...